Ratos diversos
Emputecido com aquele sacana, pensei Porra, que rato filadaputa!
Momento menor, ato reflexo do pensamento e, portanto, irrefletido: faux pas semântico, pois assim insultava o rato, toda a espécie, e nada mais.
Me ocorreu que há um momento no Diário de Manhattan, de Néstor Sanchez, em que ele menciona um rato do Harlem. O diário, sabemos, consome pouco tempo na vida de Sanchez, no início do inverno de 1975, e consiste em anotações muito breves devotadas principalmente ao sucesso de seus exercícios físico-espirituais, aprendidos com Gurdjieff (sendo destro, só escrever com a mão esquerda; em hipótese alguma cruzar as pernas; carregar os pertences em uma sacola, mantendo sempre as mãos livres; nos sonhos, tentar ver a própria mão, etc). Me afeiçoei muito a esse texto, nem sei a razão, o que talvez fale de uma verdade do afeto que justifica meu retorno ao texto, minha certeza de que o texto me diz algo, e continua dizendo a cada leitura. Há um diálogo platônico no qual se diz, como um elogio à fala, que um texto escrito, ao ser interpelado, sempre lhe responde o mesmo: vê-se que Platão era um asno ou, no mínimo, péssimo leitor.
Aqui está Sanchez, em Manhattan, com muito frio, e se propõe, como um exercício, a passar uma noite no Harlem, na rua, dormindo na rua – ou, pelo menos, sobrevivendo à noite na rua. Não é sua Nova Iorque hipster e asséptica: é 1975, uma cidade suja e putona, o cenário de Taxi Driver, a Times Square comentada por Delany em Times Square Red, Times Square Blue. Então tem esse sudaca doidão: é um homem que ignorou seu único filho por mais de vinte anos; é um autor que tinha sucesso, foi resenhado positivamente por Cortázar, imaginem o que era isso em 1971? Mas Sanchez caga pra tudo e, cheio de lances espirituais levados muitíssimo a sério, vai passar a noite no Harlem:
segunda 8
O vandalismo, sobretudo em crianças e jovens, é comentado com frequência como um grave problema nacional. Não há dúvida: visitando ontem a universidade, impressionou o espétaculo da esficácia destruidora em tudo, de novo o alarde da feiúra, somado à grosseria e ao grito de tudo. Vida neurótica do homem americano, que se proibiu o sussurro. Inconstância neurótica, ninfomaníaca, da mulher americana, que se proibiu o desejo futuro.
Tentando dormir no Harlem; primeiro, me aproximei de um latão de lixo em que improvisaram uma fogueira, fisionomias hostis, não fui bem-vindo. Impossibilidade do gesto solidário, subhumanidade. Em um beco, me encosto em uma porta que parece não ter sido aberta há muito tempo, e a temperatura, aqui, está melhor. Quando me aquieto e começo a me aquecer sinto algo e, levando a mão às costas, toco um rato, querendo também se aquecer. Nenhum temor de parte a parte.
“Nenhum temor de parte a parte”: esse trecho poderia ter sido o alvo de um comentário de Levrero em seu “momento rato”, no Diario de un canalla — ao falar de seu oposto, está falando da mesma coisa. O incidente funciona como uma espécie de parêntese à inauguração do leitmotif das pombas, que vai percorrer quase tudo que Levrero escreve desse texto até o fim, e que vai protagonizar a deriva de La novela luminosa. É também um dos raros momentos em que se tematiza, de maneira algo positiva, a condição filial: em Levrero o filho é estorvo (Juan Ignacio, em El discurso vacío), ou invisível, está à margem, não faz tema (sua filha, anônima, que recebe parte da bolsa Guggenheim, que tem um filho, em La novela luminosa).
Ora, se as pombas são anúncios do Espírito, o que são os ratos? Diante da resposta fácil (seu anátema), Levrero faz o que sabe fazer: presta atenção, descreve o que vê, e é melhor nem dizer mais: vejam aqui o que aparece quando, depois de passar um tempo brincando com a ratazana que apareceu em seu quintalzinho no prédio da Rua Rodríguez Peña, percebe que a cada movimento de aproximação que faz, o animal se esconde, mas sempre deixa a cauda fora do esconderijo:
Esse detalhe de sua ingenuidade despertou, mais que qualquer outro, uma ternura infinita em mim, uma ternura quase insuportável. Vi naquela ratinho um menino, com toda sua inteligencia, mas também com toda sua falta de experiência de vida. Quase diria que vi ali um filho. E isso que escrevo agora me umedece os olhos, me faz arder os olhos.
Por fim, há meu rato favorito na História da Literatura – uma descrição magnífica da amizade, do afeto, da gentileza gratuita e recíproca – que aparece num dos trechos do diário de Jules Renard que foi depois recolhido no Histoires naturelles. Renard está só em La Gloriette, é noite, e ele escreve: escreve precisamente a página que estamos lendo. A cada momento em que começa a escrever, percebe que um som parece fazer eco ao rangido da pena na página. Para de escrever, o outro som para; volta a escrever, o sonzinho volta. É só um murmúrio de um eco, mas há intenção, supõe Renard. Imagine o lampião, imagine o silêncio, o gradual teste empírico de hipóteses, até que Renard se dá conta: é um ratinho, roendo o pé da mesa. No silêncio total, o rato, ressabiado, espera. Mas quando há o som da escrita, o rato rói, tranquilo, a mesa, e se conforta, e Renard continua escrevendo, e nos descrevendo isso, e comenta que o rato, mais confiante, se aproxima, e começa a roer o seu tamanco.
Era uma vez um corvo de quatro patas. Ou melhor, cinco. Era corvo, mas queria ser pica-pau. Ou melhor, humano. Imaginou, de acordo com Maiakovsky, que, se em algum lugar, talvez no Brasil, havia um homem feliz, ele seria então, por força da sua grande e obstinada Vontade, brasileiro – e, ademais, ficcionista, pois inventou a si mesmo. E assim se fez mais um, um ex-corvo branco, aliás, pica-pau sem bico, humano sem ânus, uma flor do futuro nascida no presente. O narrador tinha esquecido de lembrar ao leitor que o nosso era um corvo branco: era sim, o que era uma vantagem, e não um handicap: assim se pode gozar as benesses melancólicas da corvidão e, ao mesmo tempo, posar de ganso. Corvo, sim, sempre – mas com alma de cisne! Lá vai ele, puro brio, cinco pernas, amolando as garras no feno, cheirando a parte interna das unhas e o próprio cabelo.
Um presente do futuro, uma revolução de um só, música mística revelada nos florilégios de seu estilo middlebrow consciente de si mesmo, sábio, ágil, um escritor de cinco pernas, corvo, Autor. Nas reuniões da Associação de Autores, está mais ao centro do que você imagina: penetrante e oportuno, dirigido à via media de todas as opiniões. Mas, na dúvida, pede desculpas, nosso autor corvo, Me desculpem vocês, mas eu gosto muito de X. Ou Não se ofendam, mas a verdade é que aprecio. Ou Não é para causar controvérsia, mas venho estudando com afinco a Obra de Z. E assim sucessivamente, em seu mavioso chilrear, segue o poeta de novas massas. Escolheu cuidadosamente a indumentário, sopesa com olho de ourives sua opinião de ouro, forja perene de jóias seu juízo crítico, que é pura mansidão, luz, abraço amigo aos amigos, muito fiel, a defender.
Ora, eis que um dia, na hora mais crepuscular de uma certa Weltanschauung, estava nosso personagem roendo as avelãs alheias e bebendo licor artesanal, nessa apoplexia toda particular dos semifamosos, quando se engasga com um noz de bile. Imediatamente, Renard, O Raposo, que já fazia parte da história mas apenas como pano de fundo e não tinha ainda dito seu nome, apareceu, como sói, célere e fagueiro e comeu seu olho. Hmmmm… Que gostoso!, disse Renard. Adoro um olhinho de menino literário, yummy yummy. Furtivo e dietético, considerou se deveria degustar o outro olho mas, à mineira (Renard é um Universal), lembrou que quem come e guarda come duas vezes, inclusive cu, então hesitou, e disse Ah, foda-se. Ou melhor, pensou. Mas, como aqui ninguém diz nada, tampouco pensa, na verdade tanto faz. Na verdade, ou no conto.
“Eu também tô lendo Karl Ove”
Estou lendo os livros do Karl Ove. Milhares de noruegueses e suecos já leram, e aqui estou correndo atrás, esperando as traduções saírem, ávido. Não sei exatamente o que os livros tem, e como eles fazem o que fazem: isso me interessa, pois é parte de meu trabalho examinar essas questões. Mas, por enquanto, estou lendo os livros do Karl Ove como se fosse possível apenas ler os livros do Karl Ove. Coisa vã: acho estúpida a alusão a Proust, que virou um vício do cachimbo da recepção, e outro dia vi um sujeito comparando o Karl Ove a, valha-nos deus, Franzen. Nada a ver, cara, pensei. Nada a ver.
Estava eu portanto com meu Karl Ove na mão, já o volume 3, e lembrando de coisas que a C falou sobre a vida na Noruega, sobre os anos que ela passou na Noruega e sobre como tem sido bom pra ela ler o Karl Ove e lembrar dessas coisas. Sim, eu tenho sido evangélico com o Karl Ove, eu tenho presenteado as pessoas com o livro, tenho insistido para que leiam, tenho dito Leia, cara, é bom, ou Rapaz, esse livro é do caralho, ou O melhor livro que eu li ano passado foi esse, e coisas da mesma estirpe.
Sendo as coisas como são estava eu assim sentado no sofá ao lado de minha sogra que, diante da novela na TV, dizia, não exatamente pra mim, mas pra qualquer audiência que tivesse, inclusive a dela mesma, que Nessa novela não acontece nada mas eu não consigo deixar de ver essa porcaria! Fala enfática, declaração de perplexidade: constata-se uma falência, mas apesar disso afirma-se um sucesso; constata-se uma falência e talvez exatamente por isso verifica-se um sucesso. A audiência diz que o gênero está sendo violado: viola-se o gênero, rompe-se o pacto, frustram-se expectativas. E todavia: ouvindo minha sogra comentar a novela respondi É, eu também tô lendo Karl Ove. Mas respondi isso comigo mesmo, sem falar.
Em Julho de
Em Julho de 2013 decidi voltar a escrever posts aqui: poucos, como sempre foi, e com minha pausa habitual, pois não sei de outro jeito, só tenho esse jeito, lamentavelmente. Queria continuar o que comecei no último post: escrever sobre os bastidores do trabalho de resenhista – escrever sobre o que poderia ser pedantemente descrito como a poética de um gênero menor ou, com menos pedantismo e, provavelmente, mais felicidade, sobre o caminho entre o desejo de escrever sobre um livro, a demanda do jornal, a leitura do material e o que enfim é publicado como resenha. Isso me interessa por várias razões – há meu trabalho como professor, que sempre passa por aí, por algo da ordem do processo de fatura de textos que comentam matéria literária; há a celebração de um momento menor e quase sempre privado ou de pouca audiência, que está acontecendo o tempo todo, ruído branco na comoção geralmente histriônica do campo literário; há meu interesse por coisas fudidas pras quais pouca gente presta atenção. Dessa vez, ia comentar a última resenha que publiquei, e como o resultado nada revela – e, na verdade, veta – o monte de peripécias em torno dessa publicação. Ia falar sobre como descobri a autora e como a expressão “Estudando Lydia Davis” virou uma piada doméstica; falar como fiquei satisfeito ao saber da tradução, e como aporrinhei o pessoal do jornal para que pudesse resenhar. Depois, introduzindo alguma quebra no texto, ia contar como o prazo final pra resenha me pegou na nossa grande quinzena das manifestações, e como tudo se atrapalhou, todas as vontades e planos e direcionamentos cotidianos, e terminei pedindo adiamento ao editor, e enfim produzindo a resenha de uma sentada, no último momento do último dia de prazo que eu tinha. Falaria, concluindo, como essa pressão particular provocou certo tipo de relaxamento e esquecimento, que talvez tenha se traduzido em um texto mais arejado; comentaria como o texto muito lido e conhecido se incrusta na memória, e na exigência do comentário se transforma em outra coisa, uma espécie de fruição às avessas; falaria que, ao terminar a resenha, pensei em comentar o caso com os alunos, aludindo à conexão, nesse trabalho, entre cumprimento de prazo e reputação, e falando das moedas morais que correm no campo literário (e isso, pelo menos, terminei fazendo mesmo).
Tudo falido, pois sobre nada disso consegui escrever. Até tirei foto das fichas que usei na resenha, pensando em reiterar um comentário que vivo fazendo sobre as etapas da fatura e a fatura da anotação, mas mesmo com esse tipo de gracejo a la Barthes a coisa se provou demasiado lisa, volátil, chata, e capitulei. E depois, lendo, me interrompi voltando ao problema da razão do não escrever. De onde vem a dificuldade?, pensei. Lembrei de blogs como os do K e o do Monte: mil diferenças entre os dois, mas em ambos o exercício do muito, não apenas ler muito mas muito escrever sobre o lido, quase diariamente um post, mais um texto feito, algo dito. Mesmo o Ad Man, que tanto admiro, e que trabalha numa cadência mais esporádica: não dou conta.
Eu naufrago nessa abundância: não tenho, nunca tive tanta força, nem tanto desejo de escrever e de dizer – e aí talvez seja o caso de pensar que força e desejo são sinônimos. Escrever me dá um trabalho do cão – ou então escrevo algo que sequer tem valor para mim, que sou o juiz mais laxista de mim mesmo (que saco cheio de autores elogiando seu altíssimo crivo crítico: você é sempre, necessariamente, o pior juiz do que escreve, o mais incompetente de todos, o ridículo-mor). Preciso de muito desejo pra escrever, pensei. E o que fazer quando não encontro esse desejo? Ou o que fazer quando, malgrado o desejo, o texto se cancela, e infelicita, a cada passo – pois todo texto aparece in media res, e sua vida está a caminho, paralela e incidental, mas o texto é também seu trabalho, e nesse seu trabalho se depositam, embaraçadas, sua reputação, sua vaidade, seu juízo de valor e excelência. No meio da frase que eu queria formular e não produzi está a força da falência do que ela nunca iria conseguir dizer – está também a minha filha doente, meus problemas de dinheiro, meus pseudo-amigos vermes, o reaparecimento do autor-pateta que há anos me escreveu mensagens risíveis por uma resenha ruim que publiquei de um livro dele, os trezentos outros planos que me carregam para mais e mais textos que vou escrever, que não vou escrever, até, é claro, de um jeito ou de outro, morrer. Pensei naquela frase que atribuem a Foucault, “Como faremos para desaparecer?” Não há problema, pensei, Isso tá garantido. Não vou escrever mais nada.
Em Março de
Em Março de 2013 saiu uma resenha minha, um comentário sobre um livro do Bolaño, As Agruras do Verdadeiro Tira.
Quando comecei a fazer resenhas com seriedade, em 2003, 2004, tinha como certo que, com o tempo, a coisa ficaria mais fácil. É uma habilidade como qualquer outra, escrever, você aprende com a prática: habitua e treina a mão, reduz o sistema de decisões raciocinadas, automatiza procedimentos. “Vai ficando mais fácil com o tempo”, eu pensava, e via o quanto ainda tinha de editar as minhas anotações para chegar às mil e duzentas palavras, ou equivalente: qualquer que fosse o limite, era um problema.
E, de fato, como dizer que não ficou mais fácil? Anos fazendo a coisa, claro que ficou. Mas essa coisa – como, imagino, qualquer outra associada à literatura – gera suas próprias dificuldades à medida que se encaminha, exsuda uns obstáculos filhosdaputa.
Essa resenha, por exemplo, do Bolaño: li boa parte desse livro na Argentina, quando fui lá em 2011, para um evento sobre Saer. O livro tinha acabado de sair, estava em todas as livrarias, não resisti. Li o abominável prefácio cometido pelo Masoliver Ródenas naquele jardinzinho ao redor da Biblioteca Nacional num dia gelado, depois do almoço: lembro de pensar “Porra, mas que merda esse prólogo, que coisa mais cu” e pensamentos afins, irritado com o imperativo de explicação literária prévia e defesa dos interesses dos que sobrevivem ao Autor. Lembro de comentar o livro com F, que adorou; alguma coisa deve ter aparecido também em minha conversa com o K, em alguma conversa com o K. Essas memórias de leitura não sei como entram na economia da resenha, mas sei que entram, pois tudo isso é combustível, é nutriente para o que se há de fazer no comentário.
Folheei a prova que a editora me enviou, mas o que me serviu mesmo foi o meu original, os velhos grifos, e uma marginália miúda, mas assertiva: eu parti dessas coisas para fazer a resenha e, uma vez que decidi concentrar o texto em Amalfitano, fazer o texto gravitar em torno de Amalfitano, ficou fácil: eu já tinha anotações pra dez resenhas com esse tema. Algumas decisões fundamentais já tomadas (seria necessário comentar algo sobre os gerentes do espólio; a direção seria aprobatória; Amalfitano é um bravo; etc), a coisa se faz sem muito titubeio. “Pronto”, pensei – e me aliviei, pois estava no prazo, o que era muito importante (sempre é: isto também é um negócio, e o prazo é parte do jogo “negócio”), e o resultado era honesto e, na medida do possível, bom.
“Mas será que não dá pra melhorar? Ainda dá tempo.” Ora, claro que dá – e lá fui eu, então, tentar melhorar a resenha; nesse caso, implicou basicamente em elidir, comprimir, reduzir. O que resultou, enfim, nisso:
Consta que uma das maiores preocupações de Bolaño em seus últimos dias era garantir o sustento de sua família após sua morte. Preocupou-se à toa. Com a fartura de sucesso que já marcava a recepção de sua obra quando ainda estava vivo e que só se multiplicou – a recepção de seu trabalho está robusta como nunca – e com a notável astúcia gerencial dos administradores de seu espólio literário, recursos não hão de faltar para a sobrevivência de seus dependentes. É pela combinação do sucesso de crítica da obra com o trabalho desses gestores que podemos ter acesso a este As agruras do verdadeiro tira, e isso merece menção por estar associado a uma característica marcante desse livro: seu caráter de esboço, material de trabalho, papéis em processo de uso e elaboração pelo autor, que lembra um ensaio de jazz, de cujos improvisos os músicos vão retirar material para suas composições definitivas.
Inúmeros temas e personagens presentes em outros textos aparecem aqui, e a leitura, para aqueles que já passaram por outros trabalhos de Bolaño, oferecerá a graça adicional do reconhecimento desses trechos, da observação de semelhanças e diferenças entre o que está aqui e o que foi publicado antes em outro lugar. Esse jogo encanta: nos momentos de pura reprodução parece que estamos verificando nossa expertise como leitores, medindo a familiaridade com sua obra pela extensão de nossa capacidade de reconhecimento. Se as semelhanças são notáveis, há também refrações curiosas e surpresas – em particular na maneira como os dois protagonistas, Amalfitano e Arcimboldi (sem o “h”) se articulam no livro, invertendo a ordem de prioridades aparente em 2666.
Redescrito e apresentado sob uma luz trágica algo distinta da que inferimos de sua vida em 2666, Amalfitano é aqui um personagem movido pela descoberta algo tardia, algo casual, de sua homossexualidade, descoberta transformada em escândalo pelo fato de que o alvo de seu desejo é um de seus alunos, um poeta de vinte um anos, Padilla, coisa que o pudibundismo do mundo universitário espanhol não pode tolerar e que motiva sua expulsão da universidade e sua migração para o México. A relação entre os dois constitui o núcleo dramático mais produtivo, e é circundada por todos os demais personagens, com seus dramas particulares: a filha de Amalfitano, Rosa, que vive as dificuldades do deslocamento de Barcelona para o México e da descoberta da homossexualidade do pai; os personagens de Sonora, como Pancho Monje, e os gêmeos Pedro e Pablo, um policial e o outro, acadêmico; o escritor francês J. M. G. Arcimboldi, que tem várias obras descritas e comentadas, teve um de seus livros traduzidos por Amalfitano, e cuja biografia é esboçada em esquetes, a partir de listas de seus amigos, inimigos, e com quem se correspondia. Todos têm seu lugar, e contribuem para o que há de trama aqui – mas esse lugar está situado à periferia do drama do professor de filosofia que se descobre homossexual aos cinquenta anos. Se há um problema e uma investigação aqui – algo que somos levados a crer necessário, dado o título do livro –, consiste em compreender as agruras de Amalfitano, suas negociações consigo mesmo, com os que lhe são próximos e com suas novas circunstâncias.
Ao longo da correspondência que trocam quando já estão distanciados, Padilla comenta com Amalfitano um projeto de romance que ambiciona escrever, O deus dos homossexuais, “o deus dos mendigos, o deus que dorme no chão, nas portas do metrô, o deus dos insones, o deus dos que sempre perderam”.Essas alusões parecem retratar o Grande Romance ambicionado por Bolaño por muito tempo, que encontrou aqui nesse Agruras seu espaço de exercício e experimentação. Com isso, por mais que o que tenhamos aqui seja também algo produzido por mãos alheias ao autor – a viúva e os editores, que decidiram publicar da forma em que está – trata-se de um livro capaz de generosidade suficiente para contemplar o que há de enigmático nas experiências do mais ínfimo e esquecido dos humanos, capaz de acolher o perdedor, o estranho e o fodido no mesmo gesto em que acolhe intensas perplexidades, sofisticadas produções culturais, guerras, convulsões sociais. Tal ambição, que se espalhou por toda sua obra, é admirável, mas a grande raridade é sua realização feliz em literatura, que merece destaque onde quer que se manifeste.
É melhor? Se é, de fato, melhor, devo ser capaz de colocar o dedo em cima da melhora e dizer “Aqui, veja: isso estava tosco antes, agora está melhor”. “Antes estava turvo, agora está claro”. “Antes estava obtuso, agora está incisivo”. E assim por diante nessa oposições. E, se não consigo fazer isso, se não tenho esse tipo de clareza, como posso pensar que está melhor? É como na história de Nabokov: se você não sabe o nome daquela árvore, desista de ser escritor. Ou quase isso.
O fato é que quando meus amigos F, K, R, O e M elogiaram a resenha, destacaram todos como núcleo de interesse e evidência do valor da resenha, de seu acerto como comentário a esse livro, um mesmo trecho – que eu sem hesitar retirei, e que sobreviveu na resenha publicada por obra e graça do meu editor.
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