ensaio

Crítica literária 2.0

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on setembro 3, 2010

Costuma se sentir afortunado, e isso por inúmeras razões, uma delas sendo inclusive porque a disposição da sorte como um fator operativo no processo bloqueia uma sequencia causal mais estrita, reducionista e rudimentar, que colocaria no centro do palco noções de competência e excelência, e isso não seria bom para ninguém.

Em particular no que diz respeito à literatura, a fortuna efetivamente lhe sorriu, pois não sabe como seria viver disso. Poderia, claro, ser jornalista e trabalhar com literatura, tem amigos que fazem isso e não vivem debaixo da ponte. Mas sobrevive com risco reduzido, em seu trabalho de professor e pesquisador em uma universidade pública, o que nesse país significa que seu emprego é mais ou menos estável e, embora atravessado por complicações sem conta, umas estruturais e sérias e mil e uma espúrias e risíveis, lhe dá conforto, alguma satisfação, e a oportunidade de se sentir, algo romanescamente – e quem vive sem ficção que atire a primeira pedra – menos vítima da máquina do mundo.

Ou seja: não vive “de literatura”, e de fato não faz a menor idéia do que poderia ser isso. Teme perguntar isso aos autores que conhece, embora já faça anotações sobre o tema há meses, embora deseje escrever a respeito. Profissão: Autor – o que pode ser isso? Inquirido na escola sobre a profissão da mãe, um garotinho responde Minha mãe é autora, ficcionista. O que pode ser isso? Sabe, por relações de maior proximidade, que um determinado Autor vive bem, pelas benesses da família e por um trabalho colateral na mídia; outro tem uma competência muito específica que o torna buscado para trabalhar em campanhas políticas, e dessa operação sazonal tira seu sustento; outra trabalha como tradutora, outro vive perigosamente – todos ganham alguma coisa de direitos autorais. Apesar do desejo de saber, tem vergonha de sair perguntando, e isso porque há um embaraço no negócio de extrair o sustento do literário: é, obviamente, um trabalho, um negócio, mas sua especificidade tem algo de esquivo. Esse componente fugidio não tem a ver, necessariamente, com sua condição de “arte”. Mesmo se visto de maneira mais operacional, como artesania, fruto de empenho sistemático e resultado de prática deliberada, ainda assim a coisa se complica na circulação de papéis, expectativas, performances, valores, o diabo.

O que publica de resenhas no jornal depende de um relacionamento com um grupo pequeno de jornalistas, desde sempre marcado por gentileza e urbanidade: eles o solicitam, ele os solicita, negociam prazos e possibilidades, e assim a coisa vai tipo meio a meio, com ele criando demandas para resenhar livros de autores que já lê e admira e sobre os quais já pesquisou e escreveu e também recebendo demandas para comentar autores que talvez não lesse não fosse o imperativo da resenha. Não tendo de se sustentar com o que recebe por esses trabalhos, o que ganha vira uma espécie de bônus de bom comportamento,  um prêmio para o Funcionário do Mês que, via de regra, é vertido na aquisição de outros livros que, por fim, verá que não tem mais tempo para ler. Pois há os textos dos alunos, que tem de ser prioritários, e há os mil textos próprios do restante do ofício – atas, relatórios, projetos, prestações de contas, planos de curso, avaliações, pareceres. Há sua pesquisa, sobre a produção ensaística contemporânea, que lhe consome, tem lhe consumido muito tempo, vai lhe consumir mais tempo ainda; há o projeto de uma biografia de Juan José Saer, ainda em seu embrião, que não deseja que morra no nascedouro. Há mil e um planos, e todos custam leitura, leitura, leitura, e esse é só o começo da conversa.

Lembra de quando estava no mestrado, chegando cedo na biblioteca vazia, cumprimentando as bibliotecárias e se deixando enlevar por uma ou outra leitora compenetrada, gastando horas na leitura de números velhos do NYRB, em um uso quase injustificável do tempo que deveria estar investindo em leituras para a dissertação. Obrigação e diversão, concentração e digressão, maldita economia. Nunca seria um comentador de literatura hoje sem aquelas manhãs, sem aquela lentidão, sem aquele desajuste temporal e procedimental com sua circunstância e com seus colegas que, mais ciosos da própria carreira e talvez melhor orientados, avançavam em linha reta, como demônios.

Lembra, no caos de papéis em cima da mesa, debaixo das mil obrigações de papel, na hora de decidir o que levar para a praia, de um momento de A Mulher do Tenente Francês no qual o narrador diz algo como É isso que costuma acontecer, não estranhe: as pessoas somem de vista, tragadas pelas sombras das coisas mais próximas. Lembra do vaticínio de ML no decálogo que ele vem elaborando com óbvio gosto há tempos, publicando e republicando, como se fosse um manifesto: não gosta do tom délfico, da empáfia (“Dez mandamentos? Caralho…”), da unilateralidade do negócio produzido em torno da anomalia (o caso Parker). Mas, independente de tudo que é da ordem do gosto, lê verdades ali, e lê com particular melancolia o momento em que Laub diz que

Você lerá só por obrigação. Nunca mais irá atrás de um livro indicado por um amigo. Nunca mais fechará um livro com a sensação de que, para o bem ou para o mal, e isso é quase regra para leitores mais experientes, não há o que dizer sobre ele.

Há algo aí, há um aprendizado aí – como também há no entusiasmo do AdMan quando começou a receber livros “espontaneamente“, que começaram a brotar em sua caixa de correio sem demanda, indicativo de um reposicionamento no campo, sem dúvida marcador de prestígio e de progresso. Há vaidade, há a sensação de reconhecimento e recompensa – há ganho sim. Mas o que fazer com o rapaz que lia por horas a fio aqueles exemplares velhos do NYRB e o Folhetim da Folha e pensava que queria aquilo pra si?  O que fazer com o rapaz que, fumando muito, se preocupava com dinheiro para mais cigarros assim que acabasse o maço e, com ele, o livro de Perec que seu amigo lhe emprestou? Uns jornais velhos e amarelados, o cinzeiro cheio, uma poltrona herdada e perdida, e uma pessoa que não existe mais e, claro, não tem mais nada a dizer.

Blogologia – 1

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on junho 2, 2010

Como já comentei aqui antes, este blog busca se aproximar de outros, que servem de modelos com relação aos quais meço meu sucesso relativo aqui. Claro, isso deve ser tomado cum grano salis – isso não é uma corrida de cavalos, e efetivamente estou apenas falando, de um jeito que julgo mais acertado, desse negócio que vai por aí chamado de “inspiração”. Se escrevo esse blog é porque, antes, li outros – e, tendo lido, quis escrever também, participar da conversação desse jeito particular que se configura quando você escreve. Sei que muitos de meus alunos ficarão horrorizados ao se defrontar mais uma vez com esse pronunciamento, mas é o tipo da Verdade que clama por enunciação desde o Início dos Tempos: a gente lê primeiro e depois, eventualmente, escreve. Isso, que está sendo escrito aqui, segue essa cadeia causal, assim como tudo o mais que já escrevi e provavelmente que escreverei.

Assim, vejam aqui algumas fontes deste blog:

1. Il Miglior Fabbro. DP, Mojo-man, escreveu por um tempo o melhor blog que li, o que mais curti ler: eu dava aulas de Inglês em horários ridículos, encarava todo tipo de problemas de um professor subalterno, que ao mesmo tempo era um profissional em formação – mas eu sempre encontrava algum tipo de consolação boeciana nos textos desse senhor. Hj o blog é um finado, mas pode-se ver pelos fósseis espalhados na web que o material era fino. Depois houve uma outra investida, no esquema dos Amores Expressos – e mais uma vez DP se notabilizou e distinguiu. The motherfucker just can’t help it.

2. O Amigo. Maurício Raposo foi um dos poucos amigos que fiz na época do mestrado; depois que paramos de nos ver e falar – e isso durou anos, viagens minhas, viagens dele, casamentos meus, casamentos dele – só sabia dele por seu blog. Que era sempre bom, que tinha uma pegada fenomenal, que parecia ser movido por um pathos todo particular que eu teria de renascer pra encarnar. Um dia pensei isso mesmo: que só com uma biografia como a dele se escrevem coisas como essa, ou essa, ou esse projeto de pastiche de Eça. Às vezes penso que em minha hora final lembrarei dele, com sua calça de moleton às avessas, sua barba por fazer, suas fitas de Neubaten, seus cigarros amassados, sua voz molenga de ex-carioca. Direi, com muita dificuldade, Raposão… e ele, em silêncio total, sem nenhuma hesitação, acenderá um Marlboro e o colocará entre meus dedos, trêmulos e marcados de velhice e leitura, como os dele. Acenderá um pra ele também e começará a recitar, em Alemão, aquela passagem dos Tagebuchen de Kafka que eu tanto gosto. Amigo é pra essas coisas, também.

3. Gringos acadêmicos. Modelos de excelência impressionantes – como esses caras conseguem? como produzem tempo, e disponibilidade, para encarar essas caixas de comentários voluptuosas? enigmas. Destaco três, com considerável variedade: o superprofissa Michael Berubé (veja esse post aqui, observe a sagacidade no uso dos links, a condução esperta de um argumento complexo, mas exposto com tranquilidade, passo a passo), o brasileiro-cum-cajun Idelber Avelar (que deu um tempo no blog, e isso já faz um bom tempo – mas como ele escrevia: veja aqui uma página qualquer, que não escolhi por ser especial para mim por alguma razão, mas justo por revelar o que era a ordem do dia quando o blog funcionava: vai do conflito entre Israel e Palestina até Cássia Eller, do importante ao trivial, do legal ao brega), e esse anônimo blogueiro que descobri graças ao DP (veja que manifestações magníficas essa e essa aqui – observe como o segundo é uma cápsula de etnografia da literatura contemporânea, ou das práticas que fazem isso que chamamos de “campo literário”). Diante desses, só me resta dizer Porra.

E vejam que nem mencionei o Kelvin, ou o Douglas, ou o Xerxenesky, ou esse negócio muito impressionante que o Berna vem fazendo quietinho, há anos, ou ainda esse projeto de comunidade imaginada dos Mesquita Bros & Co. E há mais, muito mais: ruim, bom, razoável, sofrível, risível, constrangedor. O negócio é abundante, e o problema não é – provavelmente nunca é – a escassez de recursos.  E qual é, então, o problema?, você se pergunta. E eu, que sou de poucas perguntas, tomo emprestado essa sua e pergunto a Adorno, na praia.

Taprobana, Bowles

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 21, 2010

1. A primeira vez que li Paul Bowles foi na biblioteca: eu passava muito tempo lá, às vezes tentando estudar, mas na maioria das vezes só explorando, e foi assim que encontrei o livro na estante. Achei curioso, não sabia nada sobre o autor, mas vi que tinha uma introdução do Gore Vidal – desse eu já tinha ouvido falar. Li a introdução, que me deixou ainda mais interessado – mencionava, claro, o Marrocos, e o caráter escandaloso de algumas narrativas. E por isso, por causa de minha necessidade de negligenciar minhas obrigações, matar o tempo e me esquecer de mim mesmo, de uma introdução de Gore Vidal, e de meu interesse por histórias escandalosas, comecei a ler Bowles – lá se vão vinte anos.

2. Quando eu estava fazendo o doutorado, volta e meia acalentava a idéia de usar a história de “Um episódio distante” como uma espécie de pano de fundo alegórico para o que eu pretendia discutir na tese: lembro de ficar sentado em uma poltrona velha que eu tinha herdado do espólio da mãe de um professor – lembro que li Vida: Modo de Usar nessa poltrona – até tarde, com uma prancheta na mão e um caderno, rabiscando idéias em torno disso, um cinzeiro que eu tinha apoiado no braço da poltrona, um suéter gasto que eu sempre usava dentro de casa.

O conto, como sabemos, é apenas um momento em uma matriz que Bowles perseguiu e reiterou muitas vezes, e fala de um linguista que perde a língua e a razão em uma aventura oriental. Eu achava que isso dizia muito, que teria muito a dizer com isso. Não tinha, não tive, nem tenho: tudo que essa história tem a me dizer já foi dito, e foi dito pelo Autor e por seus personagens, dito para mim com todas as letras desde a primeira vez que a história foi lida, numa biblioteca, em Salvador, em 1990. Nenhuma alegoria, nenhuma lição, nada a dizer: já devo ter lido essa história umas dez vezes, e a reli há dois ou três dias, no dia em que escrevi outro post sobre Bowles.

3. Durante muito tempo não soube qual era a cara de Bowles, até que um dia encontrei uma foto: ele está com a mulher, Jane, em um barco, ou coisa do gênero: a cena é muito bonita e, ao mesmo tempo, discreta, doméstica. Vemos o assanho que a embarcação provoca na água, no lado esquerdo da foto, o lado pro qual eles estão olhando; o sol está na frente do rosto de ambos; o espaço à direita é só a quietude opressora do mar aberto, só água até o horizonte. Nenhum deles olha para a câmera, Paul está sem camisa; ninguém está exatamente sorrindo, mas é fácil ficar com a impressão de que o sorriso está por perto, e que isso é bom.

A essa altura eu já tinha lido que Bowles chegou efetivamente a adquirir – comprar, possuir, ter – a ilha de Taprobana com a grana que ganhou por causa do sucesso editorial de O céu que nos protege. Invejei muito isso. Que maravilha deve ser, pensava, poder realizar tanto, ser tão premiado por ter escrito um livro. Imaginava um lugar magnífico, senhorial e um pouco descascado – mas lindo, sempre lindo, com uma beleza abrupta e enigmática só amaciada pela umidade insistente dos trópicos, e ainda com uma população nativa imprecisa, interessante, ritualística. Com tudo isso, imaginei que essa foto retratava um momento da vida do casal nessa ilha – que os dois estavam ali celebrando sossegados e satisfeitos a Sorte Grande, a Grande Oportunidade que deve ser amar e ser amado e ter uma ilha inteira só para viver e conversar de literatura vida afora. Depois, lendo biografias de Bowles, descobri que estava enganado – mas que fazer? Essa foto é linda.

Olavo de Carvalho, Caralho

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 19, 2010

A conexão aventura e leitura nada tem de necessariamente generalizável: pode ser ausente e inócua para muitos. Mas, para mim, está sempre em alguma medida na pauta. O regime hermenêutico que aplico em geral tende a passar por uma memória anguladora da leitura tout court, e isso, que foi construído quando era criança, significava ler Julio Verne, Emilio Salgari, Malba Tahan. Embora funcione a posteriori de um jeito que é próprio de um certo profissionalismo e do que chamamos de aprendizado, há uma força na cena primária, e a avaliação do que aconteceu entre o leitor e o livro, ao passar por essa peneira da “aventura”, termina sempre virando uma resposta que dou à pergunta Saí do lugar? Há um momento em que Perec fala da atitude do garoto que, com o livro à sua frente, parece em prontidão para o mergulho no livro: essa atitude, essa prontidão para o acontecimento, e a compatível disponibilidade para se deslocar – é disso que essa pergunta fala.

Por isso hoje, conversando com o Tiago sobre o Kelvin – que anda interessado em umas coisas demoníacas – disse Pois é, outro dia a gente tava até conversando sobre The Secret Sharer, T. Acho que ele tá numas de explorar esses temas, Outro, Alteridade, e foi até que chegou naquele lance ali do post. Ele mesmo me falou mais cedo Ah, esse post hoje eu escrevi sem entender, Tio.

“Escrevi sem entender”: achei bom isso, e fiquei um tempo pensando no que isso quer dizer – e vejam vocês que achei bom primeiro, e só depois fiquei ruminando pra fazer a derivação interpretativa que me permitiria, entre outras coisas, mencionar o post do Kelvin aqui e quem sabe até comentar sobre esse problema – a saber, como um escritor pode escrever sem entender, em certa medida, o que escreve – com meus alunos amanhã. Poderia falar também sobre a questão, que tanto tem me interessado, da construção das identidades de Autor e Crítico como negociações com o Duplo, com esse Outro representado na literatura tantas vezes como anátema, ou como nêmesis. E Tiago aproveitou a deixa e disse Ah, falando em nêmesis, olha aqui esse negócio e na hora me enviou (estávamos no gtalk) isso:  

Contar a história é o primeiro nível de elaboração da experiência. O romancista não escreve para explicar nada, mas para registrar um conjunto de experiências reais ou imaginárias cujo nexo último lhe escapa, cujo sentido ele só apreende como forma estética, não como conceito explicativo. Daí o sentimento de descoberta, e ao mesmo tempo de perplexidade, que nos assalta ao lermos um bom romance. Ele nos mostra algo de muito importante, mas que não sabemos precisamente o que seja. Por isso é que ninguém pode dizer qual “o” sentido de um romance. Ele tem necessariamente muitos, e até contraditórios. Um romance é um conjunto articulado de símbolos, e um símbolo, como ensinava Susanne K. Langer, é “uma matriz de intelecções” – não a expressão alegórica de intelecções prévias. Um romance deve dar o que pensar, não um pensamento pronto. Por isso é que homens de idéias, pensadores, ideólogos, formadores de opinião, fracassam com tanta freqüência ao escrever romances: eles falam daquilo que já entenderam, não nos dão uma experiência viva carregada de mistério, de perguntas sem resposta.

Li, e prontamente disse E o que é que tem de nêmesis aí? Eu concordo com isso. Posso caçar confusão, claro – Langer? Uma distribuição infeliz de cópulas e modais – a literatura é, a literatura deve… fala sério, né? Um tom metafísico de fundo, essas coisas – mas tem uma evocação do caralho da descoberta, da aventura, do risco, isso é bacana, em linhas gerais acho que é isso mesmo. Tem um problema epistemológico que raramente é colocado aí que acho legal também: se você retira a parte desse texto que é celebração da Metafísica da Presença, ainda tem uma coisa, e isso me parece mais significativo, que tem a ver com descoberta sem método, com saber produzido a partir de não-saber em literatura, e você sabe que eu gosto dessas coisas. Não vi nada de nêmesis. Mané.

E ele respondeu É Olavo de Carvalho, Toni.

E é isso: você nunca pode saber de onde vai aparecer o cúmplice secreto, aquele que parece com você, aquele por quem você vai se arriscar, sem saber ao certo a razão do risco, duvidando toda hora do valor do risco – mas prosseguindo mesmo assim.

Time flies

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 14, 2010

Por incrível que pareça, um dia (um dia ordinário, qualquer, que nunca seria lembrado não fosse por isso) Marcelo Rota me disse (em Inglês, como se me dissesse Oh fuckTime flies like a blazing arrow, and people change, frase de grande impacto, que vivo reencontrando. Hoje de manhã, por exemplo, depois de uma reunião de departamento, a encontrei nesse post aqui da Rachel Cozer. Chegando em casa há pouco a reencontrei num comentário que a Myriam escreveu pro post que escrevi ontem. Estou lendo um livro que nada tem a ver com isso, ou pelo menos não de cara, mas então me lembro do Amalfitano, manso e melancólico, fico pensando se vai ser esse o meu destino amanhã ou depois. Oh fuck.

O fim do livro de Maurício Raposo

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 7, 2010

Como em quase qualquer coisa, há uma certa ambiguidade na ocasião do fim da leitura. Alguns livros se permitem o abandono, e com isso o fim da leitura parece uma coisa conquistada, um objeto adicionado a seus pertences. Outros repudiam qualquer sensação de conquista: uma vez finda a leitura, o que continua com você é a perda. Você perdeu, o livro não está mais com você, aquela companhia se foi, e você vai continuar sem ela – e com a sensação da perda.

Assim, você se vê numa noite de quinta-feira, perdido em sua própria casa, pois seu livro terminou: você estava lendo sobre Henry James, algo que tem uma aura toda particular para você: conhecer, ler, usar Henry James é um indicativo de que você se afastou muito da pessoa que era quando saiu de casa, pois você tem uma idéia meio demodê de formação que está indissociavelmente ligada a Henry James e outros luxos afins. Então você passou os últimos dias, uma semana difícil, uma semana hostil, enfiando essa leitura de uma “biografia romanceada” de James nos hiatos entre as tarefas. A denominação é cretina: o livro é ficção: é bonito e bom, e é ficção. Você pensa E daí que flerte com supostos acontecimentos documentados? Quem inventa e não faz isso que atire a primeira pedra. Nossa épica, mesmo que se prove fudida e gasta, é essa: uma invenção vampira, uma criação dependente. Não é secundária, não é necessariamente derivativa – mas por mais que se esforce, e tem se esforçado, não abandona sua amante, que é também sua nêmesis, suas vias de fato.

Está claro que, se você está pensando essas coisas por volta de uma e meia da manhã, sua noite está em alguma medida comprometida e, como um estranho em sua própria casa, você se demora diante da proporcionada desordem das estantes, quer saber o que vem a seguir, quem ocupará o lugar vago, quem virá resolver alguma coisa agora que você terminou de ler The Master, agora que você não sabe mais o que ler, ainda. Você se dirige ao setor Henry James: será a hora de reler algum desses contos? Reler What Maisie knew? Coisas de crítica e comentário: Os prefácios, com o prefácio aos prefácios escrito pelo Marcelo Pen? O capítulo de Eakin sobre os textos biográficos de James? O primeiro volume da biografia de Edel? Saer escreveu um bom prefácio para “The lesson of the Master” – onde está isso? É titubeio, e passa tempo, mas é tudo vão, você sabe: essa noite, essa solidão, é isso que você vai ter.

Então você encontra, enfiado na estante acima dos livros, entre alguns pocket books largados e amarelíssimos, quase impossíveis de se ler agora, e nem são tão velhos assim – The turn of the screw, The Aspern Papers, um Conrad, todos comprados em um balaio que tinha perto do restaurante da UFMG – você encontra uma moldurinha, um porta-retratos barato, com uma foto dos irmãos James, os dois já bem coroas, no jardim da casa de Henry em Rye. Essa foto, que você carrega há mais dez anos, foi parar na moldura como um presente de Natal e de despedida para um amigo, um presente que nunca foi enviado: a legenda, que dizia originalmente William and Henry James, Lamb House, 1900, está riscada e embaixo, escrito à mão, está agora Antonio Marcos Pereira e Maurício Raposo, Belo Horizonte, 2001. A consequência óbvia de encontrar com um objeto desses em tais condições é ponderar vagamente sobre amizade, perda, erro – e, também, claro, sobre a força pálida de alegrias passadas, o prazer de colocar as mãos no bolso do agasalho em um dia frio, o vazio todo particular da espera, a casualidade apropriada da mão no ombro do amigo, do irmão, do cúmplice eletivo, seu abraço.