ensaio

Viagens, Babu

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on julho 5, 2010

Quando viajou para a India, volta e meia confundiam ele com Nana Patekar. No, no, no: Nana Patekar no pay, no pay, no pay please!, discutiu enfaticamente um guia turístico. O cumprimentavam, chamavam seu nome, Nana Patekar! Babu! A comida que pediram veio Specially delicious for Babu, e com mil sorrisos.

Quando enfim viu fotos de Nana Patekar ficou triste, pois achou que o chamavam de feio e canastrão. Mas isso foi retrospectivamente: na hora em que o reconheciam e premiavam como se ele fosse outro, era alegria e incompreensão, e a leveza de estar em um lugar estranho e, ainda assim, ser tratado como se fosse conhecido.

Essa alegria particular e esse mistério ele às vezes reencontra lendo. Fato é que, quanto mais lê, menos isso ocorre, inclusive porque ele se tornou um profissional da literatura – o que quer dizer que ele lê cada vez mais de uma certa maneira e cada vez menos de outra, que há um desgaste e um certo cansaço, às vezes ceticismo e cinismo também.

Mas ainda, apesar de mil pesares, mesmo que seja um pouquinho e logo evapore em decepção, o frisson único de ser outro por um tempo ainda o mobiliza e o motiva a cada leitura, pouco importando seu propósito. É como se ele ainda estivesse andando pelas ruas da Velha Delhi com sua namorada, com vinte e poucos, vivendo em sua própria pele a vida de um outro, experimentando os benefícios casuais de ser alheio a si mesmo – como se estivesse ainda vivendo aquele momento de ligeiro estremecimento e esquecimento de si que permitiu inclusive que ele se aproximasse daquela mulher que, a seu lado, na India, ri – como ele, sem entender exatamente a graça, mas curtindo a graça mesmo assim.

Na praia com Sylvia Plath

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 21, 2010

1. Sloterdjik/ Zizek. Um dia fui numa conferência do Zizek. Uma anomalia: um domingo ensolarado, um centro de cultura alemã, Zizek com duas rodelas imensas de suor debaixo do sovaco de uma camisa com um desenho do Mickey. Todavia, como às vezes acontece, é na morada do bizarro que encontramos a companhia amiga que mais nos é cara. Pois a meio caminho de sua exuberante e careta superinterpretação de They Live, de John Carpenter, Zizek vai e menciona mais ou menos o seguinte:

O Ocidente projeta uma imagem de si mesmo como sendo fundado na necessidade de compreender o Outro. Ora, talvez a proposta de Sloterdjik seja bem mais próxima do que é o caso. Sloterdjik diz que progresso social é criar mais e melhores condições para ignorar o Outro. Compreender dá muito trabalho, e mesmo a performance da compreensão, que ocupa tantas vezes o lugar da própria coisa, dá muito trabalho. Não quero compreender meu vizinho: quero poder ignorá-lo, e ser ignorado por ele.

Há algo duro e cínico aí, e a extensão indiscriminada desse ethos me envergonharia – claro, sou um velho nerd pós-humanista, mal e porcamente informado sobre o contemporâneo. Mas volta e meia penso nisso, nos usos disso. E em particular, penso nisso quando estou nadando. Hoje de manhã mesmo: um dia sombrio, gelado, daqui da janela nuvens carregadas. Chuva, talvez; mais certo era um dia frio, um vento cortante aqui na descida da ladeira, aquelas lufadas vindas do mar que enchem o agasalho. Nem hesitei, nem me passou pela cabeça não ir. E fui. Lá na piscina estava só, junto com dez pessoas, que salvo a mais elementar polidez (“Bom dia”, “Tá usando a prancha?”) ignorei.

2. Utilidade Pública. Projeto inovador e arrojado do camarada DP, que aparece aqui para enlevo de todos.

3. Leituras de fim de semana. Como sempre, a ganância me domina. Mas deve ser algo que inclua a) Shklovsky, A sentimental journey: Memoirs, 1917-1922 ou b) The Letters of John Cheever ou c) Carola Saavedra, Paisagem com dromedário ou d) Margulies, Rites of realism. Além disso, posso garantir que, em algum momento do fim de semana pensarei em a) Henry James (O Mestre, Pessoal, O Mestre!) b) Bolaño (2666 tá na boca do povo, e tem até concurso de resenhas no site da editora!) c) Kelvin (amigo é pra essas coisas) e d) Sylvia Plath.

Como é do conhecimento de vocês, a grande anomalia nessa lista é a presença da famosa poeta suicida. Mas observem essa foto:  imaginem uma poesia de pouca morte, de nenhum desejo de morrer, como a que nós temos quando estamos felizes o suficiente para ir à praia, e uma pessoa querida quer uma foto nossa, e nem pensamos antes de sorrir para a câmera, para o sol, para o resto do dia, para o resto dos dias.

Martel, Marx

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 12, 2010

Não é curioso? Assistindo hoje a O Pântano, de Lucrecia Martel, com meus alunos – e era a segunda vez que assistia, a primeira foi logo quando o filme apareceu, em 2001 ou 2002 – observei que o filme parece inverter a máxima marxista que reza que a História primeiro acontece como tragédia, depois como farsa. Observe que a consumição de Luchi – imolado no quintal em uma morte besta que provavelmente teve como causa primeira, além da infância e sua implacável curiosidade, o rato-do-banhado – é primeiro encenada enquanto jogo no mesmo local. Portanto, primeiro a farsa, a ficção, e depois a tragédia.

Podemos também argumentar que a fonte da morte no filme é mesmo a ficção: é a narrativa sobre o rato-do-banhado que engendra o medo que consome Luchi e o medo que o consome é que o leva à morte. A tese para mim é má, pois ofende a ficção, tornando-a fonte do mal – e eu quero que ela seja a fonte da salvação, pois nisso acredito. Mas também acredito que há de ser melhor para a ficção que ela seja má e boa, parêntese da tragédia e tragédia ela também. Estamos falando, afinal, de um filme que em uma das cenas nos mostra um menino caolho, no meio do mato, com uma espingarda apoiada no ombro, tentando insistentemente encontrar alguma coisa no cu de um cachorro.  Um filme no qual os diálogos são puro DeLillo, onde os personagens falam a maior parte do tempo apesar dos outros, e só eventualmente uns com os outros. Um filme que celebra em um passeio na represa, que junta índios e brancos em um breve interlúdio de festividade comum, uma espécie de paraíso friável e fudido. É um momento mínimo, quase invisível, muito volátil – e magnífico.