ensaio

A mãe de Coetzee

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on outubro 18, 2014

Vi que saiu nos anais de um evento um ensaio que escrevi faz um tempo. O ensaio persegue coisas que escrevi há mais tempo ainda, numa resenha sobre Verão, de Coetzee.

Sei que o ensaio é ruim, falha: trata de um feijao com arroz que ja reiterei muito, e não tem a combinação que eu queria que tivesse de pressão hermenêutica e mão tranquila, que é o que vejo em ensaios de Alberto Giordano e, por trás dele, de Barthes, críticos que tieto e tento emular. A resenha acho boa: acho que consegui fazer funcionar a coisa na exiguidade com integridade, me reconheço na forma de ler; passaram-se anos e, embora torça o nariz pra certa grandiloquência que, hoje, leio ali, ainda a subscrevo.

Como acho que o livro tem valor, como se conecta de maneira muito frutífera com o que pesquiso, e como em pesquisa só deveria haver vergonha na má fé, mas nunca no erro, devo persistir escrevendo ensaios sobre esse livro e os outros manejos do biográfico na obra de Coetzee. O declínio evidente de sua produção, patente no último livro, me diz que seu fim de vida como autor será um de miséria da arte, arremedo de si mesmo e balbucios moles dirigidos à galera de fanáticos. Paciência: os Autores também tem o direito de declinar e morrer, inclusive em vida.

Quando apresentei esse ensaio no congresso, um comentário que um cara da audiência fez, um especialista em Proust que foi meu contemporâneo na UFMG, foi que eu devia ler o Clark sobre David. Eu nunca nem tinha ouvido falar desse ensaio, e imagino que só tinha ouvido falar (no sentido de “sei quem é”) do T. J. Clark por ter sido casado com uma artista plástica e professora de arte. Tipo, tinha texto desse cara pela casa.

Fui ler, e tem a ver mesmo: foi uma observação oportuna e enriquecedora, o tipo de coisa que ocorre às vezes nos congressos e que lhe lembra de uma das razões, talvez a fundamental, para sua existência: são espaços muito particulares de interlocução. O texto de Clark vai na chave De Man, explora o regime do biográfico via Rousseau e a prosopopeia: é, assim, também dieta comum pra quem trabalha com esse temário. Mas há algo no ensaio de Clark, um investimento em estratégias de deformação, que vale muito como paralelo para a leitura desses textos (auto)biográficos do Coetzee: uma exploração da maneira como David representa a si, como se autorretrata, sua bochecha inchada evidente e relativizada, subalternizada pelo olhar que tanto solicita de quem vê.

Uma coisa que me atraiu muito foi como Clark circunda o que parece ser o centro do problema: como ele evita a peremptoriedade analítica da declaração e opta por lhe reconduzir, de novo e de novo, ao problema da descrição do quadro, tornando com isso a conclusão uma espécie de suor do trajeto de abordagem. Achei magnífico. Clark, depois, escreveu um livro no qual descreve o que vê ao longo de um ano em que passou visitando um mesmo quadro de Poussin todos os dias, uma espécie de diário da visão. Crítica é isso, pensei, e agora penso, achando que penso melhor, Crítica pode ser isso, também.  No documentário de Dick e Kofman sobre Derridahá um momento em que o entrevistador pergunta a ele Em filosofia, quem é sua mãe?  Derrida, que não parece hesitar nunca, que parece sempre estar acessando um arquivo pronto, de pura disponibilidade, fica claramente perplexo: está diante de uma pergunta inédita, nova não apenas no sentido de “nova nessas situações de entrevista, em que o clichê predomina e sempre se pergunta variantes do mesmo, o mesmo sempre sendo uma forma do óbvio”, mas também no sentido de “putaquepariu, nunca pensei isso”. Já assisti esse documentário três vezes, e é um momento sempre maravilhoso pra mim, e agora mesmo constato que não tenho a menor lembrança de qual a resposta.

 

coetzeevintage
 

Shields, Coetzee

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 13, 2010

Pela primeira vez em muito tempo, pude terminar uma resenha, deixar descansando dois dias, e reler, e revisar, e alterar umas coisinhas antes de enviar: que coisa mais refrescante e feliz. Semana que vem estará lá, no caderno, e será outra alegria.

Ano passado, em Setembro mais ou menos, liguei para minha mãe e ela disse Chegou um livro aqui pra você. Dias depois, quando fui lá, qual não foi minha surpresa ao encontrar Summertime, de Coetzee: junto, nenhuma explicação, só uma nota de envio com informações de almoxarife, na qual estava escrito à mão “Review copy”. Não eram as provas do livro, era o livro mesmo, capa dura e tudo – não faço a menor idéia de quem foi o responsável por isso, e sei que há uma cadeia de relações e indicações por trás de algo assim; o fato de terem enviado para a casa de minha mãe indica que tinham um endereço antigo meu, mas e daí? Por mais que pensasse continuava ao léu – mas, é claro, muito feliz, com o livro na mão.

Comentei isso com o Kelvin, e ele me disse Não vejo a hora de isso acontecer comigo também, Tio. Ele estava, mais uma vez, coberto de razão (isso é um puta non sequitur, mas é também verdade): eu também durante muitos anos desejei que isso acontecesse comigo, desejei ser surpreendido por livros chegando em minha casa inadvertidamente. Claro: como todos os desejos, este, quando se realizou, acompanhou a forma que lhe é própria, agregando mil sedimentos à sua casca em uma deriva peculiar entre a formulação imaginária e a coisa batendo à sua porta, obviamente uma forma incompatível com aquela, sempre pálida, mansa e unilateral, com a qual aparece pela primeira vez. Assim, os livros chegam, e são muitos, e muitos sem ter necessitado de minha agência de maneira alguma. Mas uma surpresa como essa, receber o livro de Coetzee recém saído do forno – isso é raro sim, e é bom sim, e eu desejei muito ocorrências como essa em minha vida. É um pouco como as “impossible good news” que Chesterton mencionava, e que minha irmã tanto preza.

O livro é formidável, e senti muita alegria ao terminar essa resenha – não só por ter conseguido revisá-la e fazer um texto que, creio, não insulta o texto que o motiva, mas porque tem um trabalho do cão por trás da coisa toda, desde as conexões misteriosas entre meu nome e o de alguém, alhures, que houve por bem me enviar o livro, até a leitura do livro, cheia de momentos muito pungentes, que comentei com o Tiago e com o Leandro e, também, claro, com o Kelvin, passando pelo post que escrevi na época em que li o livro, até chegar ao texto, esse, que acabei de terminar.

Assim que terminei, coloquei Loveless pra ouvir. Talvez, penso agora, tenha escolhido esse disco porque ele parece aquela obra que silencia seu autor: o que fazer depois disso, o que produzir mais, o que produzir ainda? O que será que Coetzee ainda escreverá, o que vem dali, o que virá, como eu lerei, quem lerá? Responder essas coisas é como querer desvendar o paradeiro de velhos amigos, aqueles com com os quais eu tomava cerveja e falava de Kevin Shields no fim da noite em verões passados, todos longe agora, remotos como o tempo em que eu era um cara que desejava receber em casa inadvertidamente livros para ler e comentar e não fazia a menor idéia dos livros que leria assim, do que viria junto com os livros, do que virá.