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Em Setembro de …

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on setembro 24, 2012

Em Setembro de 2002 eu estava lendo quase que só coisas de e sobre Raymond Carver. Por alguma razão que hoje ignoro entrei numas de Carver naquela época, e lembro de passar um tempão sentado em um pufe que tinha na sala, com o cinzeiro do lado, fumando e lendo até altas horas.

Será que havia alguma espécie de purgação ou catarse nessas leituras? Eu estava bem fodido, mas é dureza você estar mais fodido que um personagem de Carver. Bem podia ser uma pulsão terapêutica, voltada para estabelecer minha boa fortuna relativa por contraste. Vai saber. Lembrei desse período faz uns dois anos quando, na casa de F, vi um exemplar da biografia de Carver. É boa?, perguntei. Não sei, não li ainda, ele respondeu. Mas foi o G que me recomendou, ele gostou. 

G nessa época estava prestes a defender a tese dele, que era, mais ou menos, sobre Carver. Botei fé no juízo do especialista e fui ler a biografia. Era boa, mas cheia daquelas interpolações risíveis, e o fato é que depois de vinte, trinta biografias literárias a monotonia do trilho hermenêutico cansa, os perenes licenciamentos dos biógrafos. A meio caminho da coisa a abandonei, cansei de ver Carver se fuder, e já sabia do pano final com aplausos e das baixarias post-mortem entre os herdeiros; larguei o livro à toa, em uma pilha qualquer na casa, me esqueci dele.

Pouco depois minha irmã foi passar férias comigo – era meu último inverno em Belo Horizonte, mas ninguém sabia disso ainda. Ela pegou a biografia um dia, me perguntou se era boa, eu meio que repeti o que o F tinha me dito sobre o G e mais o que acabei de escrever aí em cima; ela ficou uns dias manuseando, levando pra lá e pra cá.

Hoje abri o livro, procurando uma parte que eu tinha sublinhado, e encontrei varias anotações dela. Algumas eram sublinhados a lápis, pedaços de frase como

Sandmeyer was intrigued by an abandoned school, but Ray was restless

praying to Jesus in one breath/ to the snake in the other

He had given up attempts to look cool

Inside was an old iron bed. I found a shoe box under the bed.

He did not know it, but he was already at the midpoint of his life.

Ela também escreveu ao redor de algumas fotos, como se fossem legendas alternativas:

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Thunderous sideburns and a jewfro, brother: that’s how you need ‘em!

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To find solace in one’s art is beautiful.

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There’s something about Ray

O fim do livro de Maurício Raposo

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 7, 2010

Como em quase qualquer coisa, há uma certa ambiguidade na ocasião do fim da leitura. Alguns livros se permitem o abandono, e com isso o fim da leitura parece uma coisa conquistada, um objeto adicionado a seus pertences. Outros repudiam qualquer sensação de conquista: uma vez finda a leitura, o que continua com você é a perda. Você perdeu, o livro não está mais com você, aquela companhia se foi, e você vai continuar sem ela – e com a sensação da perda.

Assim, você se vê numa noite de quinta-feira, perdido em sua própria casa, pois seu livro terminou: você estava lendo sobre Henry James, algo que tem uma aura toda particular para você: conhecer, ler, usar Henry James é um indicativo de que você se afastou muito da pessoa que era quando saiu de casa, pois você tem uma idéia meio demodê de formação que está indissociavelmente ligada a Henry James e outros luxos afins. Então você passou os últimos dias, uma semana difícil, uma semana hostil, enfiando essa leitura de uma “biografia romanceada” de James nos hiatos entre as tarefas. A denominação é cretina: o livro é ficção: é bonito e bom, e é ficção. Você pensa E daí que flerte com supostos acontecimentos documentados? Quem inventa e não faz isso que atire a primeira pedra. Nossa épica, mesmo que se prove fudida e gasta, é essa: uma invenção vampira, uma criação dependente. Não é secundária, não é necessariamente derivativa – mas por mais que se esforce, e tem se esforçado, não abandona sua amante, que é também sua nêmesis, suas vias de fato.

Está claro que, se você está pensando essas coisas por volta de uma e meia da manhã, sua noite está em alguma medida comprometida e, como um estranho em sua própria casa, você se demora diante da proporcionada desordem das estantes, quer saber o que vem a seguir, quem ocupará o lugar vago, quem virá resolver alguma coisa agora que você terminou de ler The Master, agora que você não sabe mais o que ler, ainda. Você se dirige ao setor Henry James: será a hora de reler algum desses contos? Reler What Maisie knew? Coisas de crítica e comentário: Os prefácios, com o prefácio aos prefácios escrito pelo Marcelo Pen? O capítulo de Eakin sobre os textos biográficos de James? O primeiro volume da biografia de Edel? Saer escreveu um bom prefácio para “The lesson of the Master” – onde está isso? É titubeio, e passa tempo, mas é tudo vão, você sabe: essa noite, essa solidão, é isso que você vai ter.

Então você encontra, enfiado na estante acima dos livros, entre alguns pocket books largados e amarelíssimos, quase impossíveis de se ler agora, e nem são tão velhos assim – The turn of the screw, The Aspern Papers, um Conrad, todos comprados em um balaio que tinha perto do restaurante da UFMG – você encontra uma moldurinha, um porta-retratos barato, com uma foto dos irmãos James, os dois já bem coroas, no jardim da casa de Henry em Rye. Essa foto, que você carrega há mais dez anos, foi parar na moldura como um presente de Natal e de despedida para um amigo, um presente que nunca foi enviado: a legenda, que dizia originalmente William and Henry James, Lamb House, 1900, está riscada e embaixo, escrito à mão, está agora Antonio Marcos Pereira e Maurício Raposo, Belo Horizonte, 2001. A consequência óbvia de encontrar com um objeto desses em tais condições é ponderar vagamente sobre amizade, perda, erro – e, também, claro, sobre a força pálida de alegrias passadas, o prazer de colocar as mãos no bolso do agasalho em um dia frio, o vazio todo particular da espera, a casualidade apropriada da mão no ombro do amigo, do irmão, do cúmplice eletivo, seu abraço.