ensaio

Ratos diversos

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 26, 2014

Emputecido com aquele sacana, pensei Porra, que rato filadaputa!

Momento menor, ato reflexo do pensamento e, portanto, irrefletido: faux pas semântico, pois assim insultava o rato, toda a espécie, e nada mais.

Me ocorreu que há um momento no Diário de Manhattan, de Néstor Sanchez, em que ele menciona um rato do Harlem. O diário, sabemos, consome pouco tempo na vida de Sanchez, no início do inverno de 1975, e consiste em anotações muito breves devotadas principalmente ao sucesso de seus exercícios físico-espirituais, aprendidos com Gurdjieff (sendo destro, só escrever com a mão esquerda; em hipótese alguma cruzar as pernas; carregar os pertences em uma sacola, mantendo sempre as mãos livres; nos sonhos, tentar ver a própria mão, etc). Me afeiçoei muito a esse texto, nem sei a razão, o que talvez fale de uma verdade do afeto que justifica meu retorno ao texto, minha certeza de que o texto me diz algo, e continua dizendo a cada leitura. Há um diálogo platônico no qual se diz, como um elogio à fala, que um texto escrito, ao ser interpelado, sempre lhe responde o mesmo: vê-se que Platão era um asno ou, no mínimo, péssimo leitor.

Aqui está Sanchez, em Manhattan, com muito frio, e se propõe, como um exercício, a passar uma noite no Harlem, na rua, dormindo na rua – ou, pelo menos, sobrevivendo à noite na rua. Não é sua Nova Iorque hipster e asséptica: é 1975, uma cidade suja e putona, o cenário de Taxi Driver, a Times Square comentada por Delany em Times Square Red, Times Square Blue. Então tem esse sudaca doidão: é um homem que ignorou seu único filho por mais de vinte anos; é um autor que tinha sucesso, foi resenhado positivamente por Cortázar, imaginem o que era isso em 1971? Mas Sanchez caga pra tudo e, cheio de lances espirituais levados muitíssimo a sério, vai passar a noite no Harlem:

segunda 8

O vandalismo, sobretudo em crianças e jovens, é comentado com frequência como um grave problema nacional. Não há dúvida: visitando ontem a universidade, impressionou o espétaculo da esficácia destruidora em tudo, de novo o alarde da feiúra, somado à grosseria e ao grito de tudo. Vida neurótica do homem americano, que se proibiu o sussurro. Inconstância neurótica, ninfomaníaca, da mulher americana, que se proibiu o desejo futuro.

Tentando dormir no Harlem; primeiro, me aproximei de um latão de lixo em que improvisaram uma fogueira, fisionomias hostis, não fui bem-vindo. Impossibilidade do gesto solidário, subhumanidade. Em um beco, me encosto em uma porta que parece não ter sido aberta há muito tempo, e a temperatura, aqui, está melhor. Quando me aquieto e começo a me aquecer sinto algo e, levando a mão às costas, toco um rato, querendo também se aquecer. Nenhum temor de parte a parte.

“Nenhum temor de parte a parte”: esse trecho poderia ter sido o alvo de um comentário de Levrero em seu “momento rato”, no Diario de un canalla — ao falar de seu oposto, está falando da mesma coisa. O incidente funciona como uma espécie de parêntese à inauguração do leitmotif das pombas, que vai percorrer quase tudo que Levrero escreve desse texto até o fim, e que vai protagonizar a deriva de La novela luminosa. É também um dos raros momentos em que se tematiza, de maneira algo positiva, a condição filial: em Levrero o filho é estorvo (Juan Ignacio, em El discurso vacío), ou invisível, está à margem, não faz tema (sua filha, anônima, que recebe parte da bolsa Guggenheim, que tem um filho, em La novela luminosa).

Ora, se as pombas são anúncios do Espírito, o que são os ratos? Diante da resposta fácil (seu anátema), Levrero faz o que sabe fazer: presta atenção, descreve o que vê, e é melhor nem dizer mais: vejam aqui o que aparece quando, depois de passar um tempo brincando com a ratazana que apareceu em seu quintalzinho no prédio da Rua Rodríguez Peña, percebe que a cada movimento de aproximação que faz, o animal se esconde, mas sempre deixa a cauda fora do esconderijo:

Esse detalhe de sua ingenuidade despertou, mais que qualquer outro, uma ternura infinita em mim, uma ternura quase insuportável. Vi naquela ratinho um menino, com toda sua inteligencia, mas também com toda sua falta de experiência de vida. Quase diria que vi ali um filho. E isso que escrevo agora me umedece os olhos, me faz arder os olhos.

Por fim, há meu rato favorito na História da Literatura – uma descrição magnífica da amizade, do afeto, da gentileza gratuita e recíproca – que aparece num dos trechos do diário de Jules Renard que foi depois recolhido no Histoires naturelles. Renard está só em La Gloriette, é noite, e ele escreve: escreve precisamente a página que estamos lendo. A cada momento em que começa a escrever, percebe que um som parece fazer eco ao rangido da pena na página. Para de escrever, o outro som para; volta a escrever, o sonzinho volta. É só um murmúrio de um eco, mas há intenção, supõe Renard. Imagine o lampião, imagine o silêncio, o gradual teste empírico de hipóteses, até que Renard se dá conta: é um ratinho, roendo o pé da mesa. No silêncio total, o rato, ressabiado, espera. Mas quando há o som da escrita, o rato rói, tranquilo, a mesa, e se conforta, e Renard continua escrevendo, e nos descrevendo isso, e comenta que o rato, mais confiante, se aproxima, e começa a roer o seu tamanco.

j_renard_Gloriette

Joseph Mitchell, Dad, 1992

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on fevereiro 25, 2011

Lembramos daquele comentário de Piglia: um crítico narra sua vida ao escrever sobre os livros que leu – suas leituras inscrevem um padrão de saliências específico nos textos, uma marca de identidade hermenêutica. Isso faz sentido: basta ler o blog do Zé Castello ou o do Kelvin por um mês pra perceber que há algo dessa ordem em operação – não é apenas estilo, é mais um modo de usar.

A publicação recente de uma tradução de trechos dos Diários de Cheever me fez dar atenção ao canto da estante no qual estão depositados meus livros de Cheever – Cheever estava na berlinda, vários conhecidos comentando, então pensei em Cheever de novo, fui me aproximar dele de novo, e fui pro canto da estante onde estão seus livros:

É só um amontoado de livros – mas a história do seu amontoamento é, certamente, uma biografia: o crítico também escreve sua vida nos livros que acumula, como os acumula, como os separa, organiza e controla, o que mantém, o que dissipa. Ora, tenho trabalhado como um cão ultimamente pra escrever uma biografia de Saer – mais: para dar sentido ao projeto de sentar todo dia para escrever uma biografia de Saer. Se esse arroubo a respeito da vida nos livros que se tem funciona, o que faria eu diante de um trecho de prateleira de livros de Saer? Esses livros seriam indício suficiente de quê? Servem para quê, a não ser para serem manuseados por febris epígonos fanáticos, eventualmente fazerem uma graninha para a família, os Nobres Livros do Autor Morto – servem para quê?

Posso favorecer a hipótese da utilidade tomando minha própria prateleira na foto como exemplo: aí estão minha vida em NY (os balcões mais baratos da Strand), uma ex (duas, melhor dizendo), um amigo perdido, a época em que queria ser tradutor, o momento em que parei de fumar (era 2008, janeiro, e estava lendo os Diários de Cheever), etc. Aí está também aquela história do Kelvin indo no Berinjela vezes sem conta e vendo o volume de cartas do Cheever e paquerando o livro sem comprar até que, anos depois, o Berna o enviaria pra mim – exatamente o mesmo livro, passando por dois amigos meus, e chegando a mim graças ao antigo dono, ignorado, sem nome  pra mim, que um dia o depositou lá no Sebo – e como abriu mão das cartas de Cheever, em benefício de quê.

Aí está também, envolvido num papel pardo para proteger um pouquinho a capa, um de meus livros favoritos, o quarto exemplar que tenho do mesmo livro, Up in the Old Hotel, de Joseph Mitchell. Mitchell, que tinha uma paciência de Jó, escreveu esses textos maravilhosos, nos quais não se conta quase nada: são só umas histórias de tipos ordinários, que se fazem envoltos em mistérios vãos acho que mais pela força magnética que a noção de idiossincrasia  exerce sobre nossa espécie que por qualquer outra razão. São histórias de quase nada, e todavia. Lembro de uma época em que lia os capítulos, ritualisticamente, toda terça e quinta à noite: eu não trabalhava nesses dias, e ficava grifando trechos e sonhando em escrever bem (eu também fumava, e nem pensava em parar). Lembro de minha melancolia ao ler Joe Gould’s Secret, e como me surpreendeu o fato de estar aparentemente mais tocado ao ler o texto pela segunda vez, tolamente surpreso por estar contrariando uma regra pseudocristã que dá sempre mais valor ao mais virginal (li esse texto em voz alta uma outra vez, lembro). E outro dia – está fresco, foi agorinha mesmo, agora no Natal – cheguei no hotel de uma visita a mil sebos, cheio de livros, feliz, e com mais um volume do mesmo livro de Mitchell. Deitei na cama, abri o livro e vi, então, a dedicatória.