ensaio

Elementos de Crítica Patética – I

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 23, 2015

O melancólico palimpsesto de todos os textos alheios nos quais você já meteu a mão: os infindos trabalhos escolares revisados, os pareceres inumeráveis, os emails, as manifestações, os ofícios.

A agoniada rede semântica na qual você se embaraçou: fiada por você, ano após ano, suas monotonias, sua incomensurável chatura enquanto ânsia de relevância.

Ó, tédio filhodaputa do eterno retorno do turno de fala. Da importância da literatura na formação do homem. Da memória cultural. Do hiato entre a experiência e o texto.

O que é a influência? O sujeito da escritura evolui. Programa de uma vanguarda.

Um instrumento sutil (ele não sabe aprofundar direito).

Uma banalidade corrigida.

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A mãe de Coetzee

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on outubro 18, 2014

Vi que saiu nos anais de um evento um ensaio que escrevi faz um tempo. O ensaio persegue coisas que escrevi há mais tempo ainda, numa resenha sobre Verão, de Coetzee.

Sei que o ensaio é ruim, falha: trata de um feijao com arroz que ja reiterei muito, e não tem a combinação que eu queria que tivesse de pressão hermenêutica e mão tranquila, que é o que vejo em ensaios de Alberto Giordano e, por trás dele, de Barthes, críticos que tieto e tento emular. A resenha acho boa: acho que consegui fazer funcionar a coisa na exiguidade com integridade, me reconheço na forma de ler; passaram-se anos e, embora torça o nariz pra certa grandiloquência que, hoje, leio ali, ainda a subscrevo.

Como acho que o livro tem valor, como se conecta de maneira muito frutífera com o que pesquiso, e como em pesquisa só deveria haver vergonha na má fé, mas nunca no erro, devo persistir escrevendo ensaios sobre esse livro e os outros manejos do biográfico na obra de Coetzee. O declínio evidente de sua produção, patente no último livro, me diz que seu fim de vida como autor será um de miséria da arte, arremedo de si mesmo e balbucios moles dirigidos à galera de fanáticos. Paciência: os Autores também tem o direito de declinar e morrer, inclusive em vida.

Quando apresentei esse ensaio no congresso, um comentário que um cara da audiência fez, um especialista em Proust que foi meu contemporâneo na UFMG, foi que eu devia ler o Clark sobre David. Eu nunca nem tinha ouvido falar desse ensaio, e imagino que só tinha ouvido falar (no sentido de “sei quem é”) do T. J. Clark por ter sido casado com uma artista plástica e professora de arte. Tipo, tinha texto desse cara pela casa.

Fui ler, e tem a ver mesmo: foi uma observação oportuna e enriquecedora, o tipo de coisa que ocorre às vezes nos congressos e que lhe lembra de uma das razões, talvez a fundamental, para sua existência: são espaços muito particulares de interlocução. O texto de Clark vai na chave De Man, explora o regime do biográfico via Rousseau e a prosopopeia: é, assim, também dieta comum pra quem trabalha com esse temário. Mas há algo no ensaio de Clark, um investimento em estratégias de deformação, que vale muito como paralelo para a leitura desses textos (auto)biográficos do Coetzee: uma exploração da maneira como David representa a si, como se autorretrata, sua bochecha inchada evidente e relativizada, subalternizada pelo olhar que tanto solicita de quem vê.

Uma coisa que me atraiu muito foi como Clark circunda o que parece ser o centro do problema: como ele evita a peremptoriedade analítica da declaração e opta por lhe reconduzir, de novo e de novo, ao problema da descrição do quadro, tornando com isso a conclusão uma espécie de suor do trajeto de abordagem. Achei magnífico. Clark, depois, escreveu um livro no qual descreve o que vê ao longo de um ano em que passou visitando um mesmo quadro de Poussin todos os dias, uma espécie de diário da visão. Crítica é isso, pensei, e agora penso, achando que penso melhor, Crítica pode ser isso, também.  No documentário de Dick e Kofman sobre Derridahá um momento em que o entrevistador pergunta a ele Em filosofia, quem é sua mãe?  Derrida, que não parece hesitar nunca, que parece sempre estar acessando um arquivo pronto, de pura disponibilidade, fica claramente perplexo: está diante de uma pergunta inédita, nova não apenas no sentido de “nova nessas situações de entrevista, em que o clichê predomina e sempre se pergunta variantes do mesmo, o mesmo sempre sendo uma forma do óbvio”, mas também no sentido de “putaquepariu, nunca pensei isso”. Já assisti esse documentário três vezes, e é um momento sempre maravilhoso pra mim, e agora mesmo constato que não tenho a menor lembrança de qual a resposta.

 

coetzeevintage
 

Um problema

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on setembro 17, 2014

Andei pensando no seguinte problema:

Quando estou considerando narrativas habituais, tenho um pacote de categorias que aplico para sua descrição e análise. Um exemplo, aqui. A narrativa, e as categorias que utilizamos para lidar com elas, são criaturas do hábito, tradicionais, conhecidas.

Quando estou considerando narrativas excepcionais, extraordinárias: o que é que eu faço?

Eu tenho um problema.

Vejam aqui, por exemplo, o que George Saunders faz para comentar Daniil Kharms: vejam o comentarista se atribulando. A certa altura, ele diz: No processo de martelar um prego, Kharms faz evaporar seu próprio martelo.

Isso, aqui, está como crítica, e é certo que esteja: é comentário de literatura, e além do mais feito num jornal, para informar mas também para vender livro que acabou de ser lançado.

Mas o negócio também tem uma outra vida, que não é a vida vicária que via de regra atribuímos à crítica. A doideira de Kharms provoca um negócio na doideira de Saunders: rua de mão única, um vem ao encontro do outro, rola um aperto de mãos aí.

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Cecil Taylor

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 10, 2014

Venho lendo e pensando sobre Cecil Taylor ultimamente. Venho nos ultimos anos, na verdade – mas, nos ultimos dois, tres meses, por conta de um ensaio que planejo escrever sobre César Aira, Cecil Taylor tem aparecido mais.

Um domingo, fim de tarde, eu estava vendo o programa do Arthur da Távola, Arte de ver, arte de ouvir.  Eu devia ter onze, doze anos, então isso é uma lembrança de 84, 85, e esse programa é tão remoto que não achei nada no youtube, nenhum vestígio. Imagino que foi algo que peguei com meu pai: que meu pai estava assistindo isso algum dia, algum fim de domingo, e fiquei ali, junto, e assim fiquei com a lembrança de ver o programa. A ideia de se tratar de um hábito pode muito bem ser fictícia, pois há impressão de regularidade, mas de lembrança do programa tenho apenas uma vaga recuperação geral: exposições do Arthur da Távola, comentando alguma obra, algum autor, seguida de um momento em que o título se justificava. Lembro, assim, de incidentes, de lances do programa, e de alguma maneira da proximidade de meu pai – mas mais adiante comentarei mais sobre certa improbabilidade aqui.

Um dos incidentes passa por uma exposição longa a respeito de Itzhak Perlman, e o Arthur da Távola falava algo sobre os dedos gordinhos do Perlman, do cenho, das expressões no rosto – e a isso se segue, acho, a execução de algum movimento de um concerto de Beethoven. E em outro incidente ele fala de Cecil Taylor e – disso lembro vivamente – diz como Taylor encarna o artista, e é como se ele estivesse falando em maiúsculas, e ele diz “as mãos, a postura, o cabelo, tudo”. E então vejo Cecil Taylor, numa televisão Telefunken, num apartamento de um conjunto habitacional do BNH em Salvador. E, como talvez dissesse Barthes a respeito de algo semelhante, “Isso pega”.

Mas o que mesmo? É, como disse outro dia aos alunos, o estranhamento. É ostranenie, é isso: a ruptura fica, marca, e perdura. Da música, não faço ideia e, mesmo hoje, 25 anos depois, tendo já ouvido o diabo, ranjo os dentes ouvindo essa musica: como se para ela não houvesse aprendizado na mesma medida em que não há esquecimento. Começo a ouvir, ranjo os dentes, interrompo a musica e, se for o caso, que venha outra coisa, outro jazz, mas algo que nao faça isso comigo. Gera algo curioso, pois parece que, na mesma medida em que não consigo fazer nada com a musica, ela sempre parece ser capaz de fazer a mesma coisa comigo, e em parte o que ela faz é me retornar àquela condição de contato infantil e atônito.  E há uns dez anos, quando conheci esse texto de Aira, Cecil Taylor – uma espécie de biografia dos primeiros anos de Taylor, ou um breve ensaio sobre a construção de um nome de artista, ou uma narrativa sobre o novo na arte: vai saber, com Aira nunca se sabe -, isso também pegou, e continuou como algo lido, relido, aproveitado em margem de desperdício, quer dizer: não sei bem o que fazer com isso, mas me sinto impelido a fazer algo com isso e, na falta do saber o que fazer, me gasto em torno disso. Com o texto, quero o que sei que a musica me negou. Mas nem assim, por força de desejo, sou menos órfão, menos vão: continuo à toa e, como se vê, derivativo, e não sei o que está acontecendo, nem na música, nem no texto. O fato é que percebo que parece que vou envelhecendo só pra achar cada vez mais frágil saber. Vejo alunos, colegas, amigos, todos cheios de suas peremptoriedades. Mas, na hora de botar o meu saber na mesa, vou ter bem pouco a meu favor a não ser coisas como essa foto, linda, do Cecil Taylor, que imprimi e coloquei diante de mim como um talismã. Para que (a superstição, o pensamento mágico) me desse sorte nesse ensaio, talvez. Me servisse de escudo contra a desonra que seria sacanear uma coisa íntegra – como essa foto, aquele ensaio, ou a lembrança do dia em que vi Cecil Taylor na televisão – com nada mais que minha ansiedade de aparição na cultura, ou com a empáfia tola, impregnada de voz ardida e certeza, dessa urgência por relevância tão própria de nossa época.

CecilTaylor

 

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on novembro 28, 2013

Aqui está Barthes, olhem a cara dele:

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Barthes, desamparado, perplexo, coitado. A foto está no Barthes por Barthes, e sua legenda graciosa é “Tédio: a mesa-redonda”.

Ontem, tentando arrumar as gavetas de quatro anos de trabalho em um setor da universidade que há pouco deixou de ser o meu, encontrei anotações de eventos, de mesas-redondas, de bancas. Há muita coisa no espectro emocional ali consignado, mas não “tédio”. Aparece, antes, “desperdício”, e a ideia reiterada de tempo jogado fora, de dispêndio vão de si. Aparece o patético: dos outros, em sua vaidade e auto-elogio: não sei como vou aguentar ainda mais vinte, trinta anos de carreira em torno de pessoas tão grosseiras a ponto de não perder uma chance de repousar um louro a mais na própria coroa, gente que tem a si mesmo e suas glórias como assunto predileto, usurários usurpadores inclementes do lance fraterno e solidário do ouvir. Quanto charlatanismo, quanta ânsia de protagonismo, quando desejo de ser amado, adorado e louvado. Para isso, não seria tédio a resposta, mas a pouca utilizada referência à gastura é que me pareceria própria: está gastando essa chateação, não se quer mais ouvir. O que se elogia estou condenando agora a um inferno de prolongamento da própria voz, e ao consumo da hóstia consagrada da bajulação de sua beleza, excelência, invulgaridade. Ao raio que o parta. 

Aparece nessas notas também o patético de si, em ponto menor, pois assim como os falastrões supracitados me julgo mal, sei menos de mim do que talvez devesse, e me dou a direitos, como me impacientar, me irritar, demandar, exigir, aplicando régua ao mundo, ah, mundo melhor o feito por mim. Então, como ontem, leio a mim mesmo e penso Ridículo!, e me acho coberto de razão, errando de novo, evidentemente, talvez pelo peso de abusos e excessos praticados ou sofridos alhures.

Em Novembro de

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on janeiro 26, 2013

Em Novembro de 2012 constatei que estava perdendo a memória. Nada grave, mas era inegável, e estava alojado quase que exclusivamente na região da memória mais recente: não havia nenhum caso que envolvesse lembranças de infância perdidas, por exemplo.

Um incidente representativo do processo. Lembro que estava às voltas com a compra de livros de fotografia, e desejei lembrar de uma fotógrafa em particular. Lembrava da capa de um livro dela, de auto-retratos dela, de elementos da relação dela com os pais: ou seja, eu lembrava dela. Mas o nome me escapava, e sequer conseguia lembrar de um nome próximo.

Lembrava do curador de uma exposição que incluía o trabalho dela, um cara que escreveu textos sobre o trabalho dela – mas lembrava isso também de maneira trôpega: lembrava um nome parecido com o sobrenome do cara, mas que eu sabia não ser o próprio nome dele.

Lembrava outras coisas. Que os trabalhos, pelo menos os que eu conhecia, eram todos preto-e-branco. Que a relação da artista com os pais era complicada. Que sua produção se concentrava em poucos anos. Que morreu muito jovem. Que eu achava a bunda de uma das modelos em uma das fotos linda. Que a tensão nas fotos parecia se transformar em outra coisa cheia de uma agonia mordaz e destemida, um espectro sinistro e pouco controlável de entrega urgente a uma alteridade poluída, mas sedutora, convidativa. “Venha”, diziam as fotos. “Tome”, diziam, “Eu sei que você quer também”.

Lembrava, portanto, muita coisa, mas foi só horas depois que lembrei que era Woodman.

woodman

História abreviada dos livros que publiquei

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 13, 2011

Lancei três livros até agora.

O primeiro foi uma coletânea de textos do Rorty: três conferências, um texto autobiográfico, um texto de prognóstico e profecia: todos traduzidos com muita alegria por mim, em meu velho Mac Classic, e revisados em conversas com minha então orientadora. O livro contava ainda com uma introdução que eu e ela escrevemos juntos e com uma orelha generosa do Luiz Eduardo Soares. Nunca houve lançamento desse livro, nunca dei autógrafo, e sequer fui remunerado pelo trabalho; a edição se esgotou, e eu mesmo só tenho um exemplar. Lembro de ter ficado feliz quando apareceu, lembro de ter achado bonito e de ter sentido orgulho.

O segundo foi um livro que resultou de um prêmio que recebi de um banco interessado em promover a cultura: meu nome saiu na capa, junto com o de outros onze premiados, e o livro é esse balaio, sem outro norte a não ser o conferido pela premiação. O texto que saiu nesse livro me trouxe muita alegria: talvez pela primeira vez tenha me arriscado, tenha escrito algo sem saber direito o que escrevia. Era, é claro, apenas um ensaio: comentário, crítica, que é tudo que escrevi até agora, tudo que escrevo. Mas era também uma outra volta do negócio: acreditei  que o texto honrava minha relação com o Autor que comentava, e não me sentia perseguido pelo medo do erro.  Depois desse livro fiquei um tempo cheio de sonhos loucos de um novo começo, acreditei que estava descobrindo algo a respeito da escritura. Eu era e sou um filho de Barthes – bastardo e tardio e não-planejado, mas amado, no amor que vai de mim pra ele, sempre – e estava descobrindo aos trinta e poucos anos o que, enfim, se queria dizer com a distinção escrevência/ escritura. Mas, é claro, nada ocorreu, pois assim é a vida: as coisas só ocorrem às vezes, seria talvez o caso de compreender isso que chamamos de adventício a partir de outra matriz de valoração – pois vivemos todos mais ou menos escravos da razão prática e da lógica do resultado, do suposto matrimônio de trabalho e amor, mas o que fazer de amores de dissipação, de forças-de-vontade que se esgarçam sem muito ônus, sem muita preocupação com operações monumentais de fixação de marcos de passagem – o que fazer? Claro está que, se a pessoa pensa em coisas assim, apenas ocorreu algo da mesma ordem daquilo que nutriu a fatura do ensaio que propiciou essa forma peculiar de aprendizagem e alegria que nunca se fixou nem em conquista nem em método nem em transformação da vida nem em epifania – e, como tudo o mais, também se foi.

O terceiro foi um livro que escrevi sem saber que estava escrevendo, pois o que estava escrevendo eram uns artigos com um amigo pra uns eventos acadêmicos que foram aparecendo. Me impressiona observar o pouco que lembro hoje de como foram escritos esses textos: o que lembro é do período, e isso é como lembrar do conjunto, mas não do conteúdo, e só são coisas vagas, minha dureza eterna, o apartamento, os livros, a mesa, a cama, os cigarros, uma lâmpada que eu adorava, as estantes que eu fiz. Mas lembro, claro, da amizade: lembro da presença dessa pessoa, meu amigo, o co-Autor, em minha vida, como uma pontuação: a primeira vez que nos encontramos, conversa X, conversa Y, conversa Z, visitas, saídas, risadas, conselhos; sua insistência para que eu parasse de fumar e começasse a nadar, a diferença na ordenação e no suposto projeto de nossas vidas, o gosto musical lastimável que até hoje o caracteriza. Uma vez viajamos os dois para a Europa e não nos encontramos em Praga por dias de diferença – e, depois, rimos ao pensar no encontro fortuito, ele de terno e com toda pompa e circunstância, eu de mochila e o antípoda da pompa. Outra vez, na véspera de minha defesa de doutorado, nos encontramos sem marcar nada na hora do almoço no restaurante japonês que, seis anos antes, eu tinha apresentado a ele. E outra vez liguei pra ele de um orelhão porque me sentia totalmente solitário, e achava que ninguém mais poderia ter algum interesse em me ouvir a não ser, talvez, ele – o que nos diz que o melodrama, como Puig bem sabia (e Barthes também), tem sua zona de pertinência facilmente verificável na carne de quem o vive, onde habita como punctum.

Esses são os livros que há, mas há também os que virão.

Um próximo contará como, ao longo de sete anos, persegui um projeto de escrever uma biografia de um Autor que admiro e naufraguei seguidamente. O livro será a contrafação do insucesso que constitui sua matéria; vou gostar muito de escrevê-lo mas será, é claro, pouco lido e logo esquecido.

Um outro será uma investida de reescrita crítica de alguns textos que admiro mas que julgo problemáticos e enfadonhos, são como uma refeição boa que melhoraria com o apropriado condimento. Assim, em um dos contos veremos trechos do Diário de Moscou, de Benjamin, mas com um pouco de sexo, por favor, pois tanto tesão pela Asja não sobreviveria sem alguma puta, sem alguma masturbação, sem subir pelas paredes em ardor. Em outro, pego dois de Os Três Mosqueteiros e os coloco a caminhar por uma alameda a discutir algumas questões menos monárquicas, e mais suculentas: Athos descobre uma forma de proto-Marxismo, e começa a temperar suas análises de conjuntura com essa mirada oblíqua, sugerindo estratégia a partir de pressupostos Revolucionários. Um terceiro e último conto – pois o livro será também, evidentemente, uma homenagem a Flaubert, dispensável para ele mas necessária para mim – será a história de um arqueólogo jovem, em início de carreira, escavando em Túnis e descobrindo ruínas com inscrições, textos antigos que contam uma história alternativa à que é contada em Salammbô: o arqueólogo ignora Flaubert e, enquanto ele pensa ver a escrita da História nós, que lemos a história dele, sabemos que já não sabemos mais qual é o fim da Ficção. O livro será um exemplo de crítica como prática revisionista da literatura – e será demolido pelos neoconservadores da crítica, esses que ainda estão de fraldas agora mas estarão de dedo em riste no futuro próximo, prontos a antagonizar tudo que seja um mundo que não seja o seu – mas se pagará plenamente pelas gargalhadas que darei ao escrevê-lo, e será lembrado, de vez em quando, por meus amigos.

Há um outro, por fim, um livro meio acadêmico, que coleta todas as coisas lindas que o Kelvin me sugeriu ao longo dos anos. Tio Toni, porque você não escreve aquela história do grego em Nova York? ou E aquele texto que você disse que ia fazer comparando o minimalismo de Carver ao de Lydia Davis, hein? Cadê? Tinha até título, o título ficou bacana. ou Você lembra que me disse uma vez que tinha um ensaio sobre o Diário do ano da peste, de Defoe? Que fim levou esse texto?  Esse livro escreverei sem esforço quase nenhum, o que é uma mentira, e será um bom começo portanto para um livro que só tratará de fatos: nele, vou incluir aquele trecho do meu diário no qual conto a respeito do dia em que atravessamos a Avenida Paulista, eu e o Kelvin, de ponta a ponta, o passeio acompanhado de uma inigualável conversa fiada na qual falamos inclusive de Saer, e que escrevi como se fosse uma versão 2.0 de Glosa – pardacenta, turbulenta, edulcorada, mas minha, enfim meu manifesto de libertação do jugo da prosa de Saer. Sei muito pouco sobre esse livro além disso, mas sempre imagino que vou estar feliz no dia do lançamento.


Derridabase 2.0

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 4, 2011

O meio de uma manhã de Maio de 2011: ele está preparando aulas.

Essa denominação vulgar obscurece um procedimento muito idiossincrático que é, algo paradoxalmente, um dos esteios de sua profissão – que é, por sua vez, uma profissão que é tomada como dado, como envolvendo um saber que todos tem, sendo algo que todos podem. Em um certo sentido isso está correto – mas é também parte do resumo grotesco de incompreensão geral que envolve esse que é o seu trabalho, no qual ele está envolvido nessa manhã.

A certa altura, ele hesita. Devo discutir Derrida aqui? O debate que pretende travar com os alunos hoje circunda as relações entre etnografia e estruturalismo, então talvez valha a pena recuperar algo de “A estrutura, o signo e o jogo”, de Derrida. Ele vai à estante, procura o livro, não acha, perturba sua mulher, encontra o livro, o abre, e começa. Mas, ao invés de continuar procedendo como procedia – lendo pela enésima vez esse texto, destacando trechos em uma ficha que depois vai organizar em um esquema em outra ficha, que depois vai reproduzir no quadro e que vai utilizar como recurso mnemônico e norteador da discussão – desliza e divaga para o seu primeiro encontro com esse texto, na época do mestrado, há mais de quinze anos.

O que era esse texto para ele, então? Um enigma, uma foice a recolher de um golpe só suas entranhas, sua suposta inteligência, sua capacidade de se defrontar com o desconhecido reduzida a uma cabeça de fósforo, tudo reduzido à sua devida insignificância hermenêutica.  A primeira vez que ouviu uma menção a esse texto ocorreu no meio de um discurso inflamado de uma professora, uma cientista política de quem não ouve falar há muito, muito tempo, mas que sabe que se aposentou cedo, nunca terminou o doutorado e mora, se ainda vive, no interior. Essa mulher tinha uma têmpera única, ele nunca viu de novo aquele tipo específico de condução da energia em uma discussão: qualquer conversa podia se transformar em um debate, e um debate era sempre um engalfinhar-se, mas era como se houvesse uma alegria de fundo, um automatismo como o do riso quando vem, inevitável, irresistível, no fim de uma piada. Uma vez ela disse Vendi todos os meus livros e deixei só uns de Foucault; outra vez, perguntou Ora, você não está levando isso a sério, não é, rapaz? E se você não está levando a sério então porque é que tá levando, hein? E ele, obviamente, nada soube responder.

Essa foi a mulher que uma vez lhe disse Ficam aí discutindo como se Derrida nunca tivesse escrito A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências sociais, ficam aí tergiversando como se isso fosse nada. Essa declaração, em sua força enigmática, oracular, o inquietou enormemente – e lá foi ele, contrito e cdf, procurar ler o que deveria já ter lido, sempre atrasado e aflito, sempre atrás de si mesmo, demasiado lento pra ser eficaz ou achar que está em sintonia certa com seu tempo, suas necessidades, tudo que é imperativo saber para ser. Essa primeira leitura, realizada na biblioteca da universidade, incompreensível, não foi menos oracular que o proferimento que o havia levado à leitura – e foi ela que retornou hoje, enquanto ele preparava sua aula, pensando no que debater com seus alunos, quinze anos depois de todos esses incidentes, sua memória cheia de lembranças e nomes desses personagens perdidos com os quais conviveu e que foram remexendo nele como se fosse de barro, como se ser jovem fosse o mesmo que não ter nenhum formato, nenhum livro de Foucault a preservar, a menor consciência do que disse Derrida, e na verdade nada a dizer.

O que era isso, considerando o ensino?, ele pensa, O que ela estava, de fato, ensinando? Pensa isso e, rapidamente, descarta, isso não é interessante, não é sempre que se ensina, muito menos que se aprende – essas coisas na verdade são difíceis, remotas, e adventícias, provável efeito colateral de uma outra coisa, um enigma mais vasto, talvez mais interessante, mas a hora avança, a manhã se consome, o tempo passa e a aula chegou – e nela, evidentemente, nada disso foi dito.

Barthes ria

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 2, 2011

Em um momento formidável (um de muitos momentos formidáveis) de seu A Preparação do Romance, Barthes diz, a respeito de Sidônio Apolinário:

Bispo de Clermont-Ferrand (século V) que defendeu Clermont contra os visigodos (importante obra poética).

Era uma gracinha? Será que Barthes estava cortejando o riso da audiência, sugerindo aí uma alça de leveza a ser inscrita na matéria trágica de sua exposição (o luto, a dificuldade de mudar, o absurdo da Vita Nuova)? Eu ri e achei bom: era isso? Rindo, leio bem essa formulação, de chofre e anacrônica, de uma performance poética? O que ele queria com esse colateral?

Há alguns anos, em um evento peri-acadêmico, vi um luminar da crítica local, em exercício, louvar, via Stockhausen, a Obra de Arte Total que era/ seria o 11 de Setembro: as torres fabulosamente em chamas, a irrupção do absoluto inesperado cancelando a rotina, o concerto das nações com a respiração suspensa, o nunca-ouvido e o jamais-visto juntos e simultâneos. Grande bosta, pensei, grande cretinice. Mas, claro, funciona como um doce de má-qualidade que vem, todavia, no melhor dos invólucros, o próprio doce de chucrute que uma vez me foi oferecido na casa de uma namorada, que recebi como se fosse grande coisa e que se provou uma ofensa ao paladar, uma afronta, um surto que tomou de assalto minha língua, colonizando-a com um ressaibo diabólico. Vem embalado em Stockhausen, agonizante intelectualmente e vivendo sua miséria particular e seu envelhecimento, vem com Schklovsky também, e o kit multiuso do Estranhamento, vem A Possibilidade da Arte no Século XXI – mas nada disfarça seu sabor hostil, a Crítica como a falência da Graça, o contrário da Graça, pura assertividade dura, pura peremptoriedade, precisamente o contrário do que encontro, quase sempre, em Barthes.

Muito bem: comentei isso hoje com um amigo, pessoa sensível e, na medida do possível, sensata: está escrevendo uma tese sobre Sebald e, como é próprio de momento de escrita de tese, anda mergulhado nessas coisas. Nos falamos ao telefone, obviamente sobre a tese, Sebald e, nessa vizinhança aí (Austerlitz, ruína, etc) o papo derivou para a imolação do Bin-Laden e, por essa via, para nossas memórias do 11 de Setembro. A certa altura, ele me disse algo como Camarada, o nosso é um mundo desgraçado, no qual até as Teses sobre a História de Benjamin são ridicularizáveis, são ridículas, pois não há mais nem resíduo da possibilidade de barrar o maldito progresso da ruína – e essas afirmações de Stockhausen não ficam atrás do sistema de esforços para dizer que o que acabou ainda não acabou. Não sei se entendi, mas ele ria ao falar – e eu, que sou seu amigo, ri também, como se entendesse, e assim nos despedimos.

Saída à Francesa

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on março 14, 2011

Você vem trabalhando há quase um ano em uma biografia: um texto que deve narrar, em alguma medida, episódios da vida de um autor argentino que viveu a maior parte de sua vida na França e morreu recentemente. Suas razões para o empenho são, em certa medida, ponderáveis e solidárias, mas tem também sua cota de obscuridade. Você crê, por exemplo, que parte de seu interesse em produzir uma biografia e em se dedicar com tanto afinco a esse trabalho em particular confirma um traço seu que, na falta de maior possibilidade de precisão semântica vou chamar no momento de subalternidade eletiva: você não deseja ocupar o centro do palco nem em seu próprio livro, quer viver como uma nota marginal a uma reputação já construída, que é a do Autor, e a sua própria reputação seria manobrada obliquamente, adjacente à daquele autor que você admira, e valorizada pela eventual astúcia de uma invisibilidade, em uma espécie de eterna saída à francesa.

Considerando uma insistência do Autor em uma conhecida antinomia de Flaubert – que disse, famosamente, tanto Madame Bovary sou eu quanto Há uma Madame Bovary em cada cidade francesa – você começou a ler biografias de Flaubert e, com isso, lhe ocorreu que não poderia ser de todo ruim ler enfim o Flaubert inteiro, em ordem cronológica, e acabar com isso de uma vez. Ler como se estivesse lendo tudo pela primeira vez (como se isso fosse possível): ler como se estivesse escrevendo uma biografia de Flaubert, ao invés de seu Autor de eleição, numa projeção da qual você espera também retirar alguma coisa, algum insight, alguma sugestão de procedimento ou uma faixa maior de segurança e graça. Você vai ler cada livro de Flaubert, e também os diários de viagem e as cartas; vai ler a biografia de Brown e a de Steegmuller e terminará o esquema lendo mais uma vez o livro que tanto lhe divertiu, o blasfemo e despreocupado Flaubert’s Parrot, de Barnes.

Você está assim, ligeiramente despreocupado, domingo à noite, agora há pouco, vivendo essas suas ficções: que você é um biógrafo, que ler Flaubert lhe faz bem, que você terá tempo. Repleto de boas intenções com seu programa especial, você se vê ao longo da leitura lembrando de outras frases, outras coisas lidas ficam interferindo e chamando sua atenção. É um momento de pequeno horror, você sabe que as frases não são suas, mas você não sabe de quem são, e afinal você também duvida, pode ser que sejam suas mesmo, um artifício de combinatória qualquer que você ignora e, de repente, elas saltam aos olhos porque fazem sentido, porque lhe dizem que tudo que você pensa é usado e de segunda mão, tudo que você vive é mais ou menos caótico, mais ou menos obscuro – e, no entanto, digamos, tudo bem, lá vai você escrevendo a vida de um Autor que você admira e, afinal de contas, de onde vem a admiração senão de um momento de clareza fugaz mas ainda vívido na memória no qual, ao ler, você percebe uma zona de obscuridade em si mesmo, descobre que sabia algo que efetivamente não sabe, mas não importa, pois naquele momento você não se envergonha, você não sabe e nisso, sim, você se dilui, igual a todos e capaz de se esquecer de si mesmo por esse momento que seja, pelo menos.