Exercícios de Crítica Literária Contemporânea
1.
O comentário biográfico incide reiteradamente sobre dois processos em Henry James.
Um, é seu tartamudear: não é de forma alguma uma gagueira, mas uma enunciação hesitante e tateante que o persegue desde muito cedo. Não há gravações de James, mas podemos imaginar a sequência de Well… Uhm… I mean… So… etc
Outro é o uso que faz de um amanuense: por volta dos 50 anos, James começa a manifestar os sintomas do que hoje é a conhecida Síndrome do Túnel do Carpo e, como uma resolução para seu sofrimento cotidiano, contrata um copista. É possível imaginá-lo, a partir desse momento, alterando sua rotina de trabalho, e incorporando ao seu processo composicional um deambular pela sala, um ir e vir que ocorre em paralelo à enunciação enquanto o copista, silencioso, oculto, atento, copia.
Estabeleça um paralelo entre os incidentes citados e as peculiaridades do discurso indireto livre na obra tardia de James, com particular atenção a The Golden Bowl.
2.
Em 1942, Bowles se mudou para um apartamento na 14th St com a 7th Ave. O ocupante anterior tinha sido Duchamp e, assim, eles se conheceram.
Improvise.
3.
É conhecida a afirmação de Piglia: A critica é uma das formas modernas da autobiografia. Um sujeito escreve sua vida quando crê estar escrevendo suas leituras.
Disserte sobre o tema, considerando as manifestações em A, B, e C.
Joseph Mitchell, Dad, 1992
Lembramos daquele comentário de Piglia: um crítico narra sua vida ao escrever sobre os livros que leu – suas leituras inscrevem um padrão de saliências específico nos textos, uma marca de identidade hermenêutica. Isso faz sentido: basta ler o blog do Zé Castello ou o do Kelvin por um mês pra perceber que há algo dessa ordem em operação – não é apenas estilo, é mais um modo de usar.
A publicação recente de uma tradução de trechos dos Diários de Cheever me fez dar atenção ao canto da estante no qual estão depositados meus livros de Cheever – Cheever estava na berlinda, vários conhecidos comentando, então pensei em Cheever de novo, fui me aproximar dele de novo, e fui pro canto da estante onde estão seus livros:
É só um amontoado de livros – mas a história do seu amontoamento é, certamente, uma biografia: o crítico também escreve sua vida nos livros que acumula, como os acumula, como os separa, organiza e controla, o que mantém, o que dissipa. Ora, tenho trabalhado como um cão ultimamente pra escrever uma biografia de Saer – mais: para dar sentido ao projeto de sentar todo dia para escrever uma biografia de Saer. Se esse arroubo a respeito da vida nos livros que se tem funciona, o que faria eu diante de um trecho de prateleira de livros de Saer? Esses livros seriam indício suficiente de quê? Servem para quê, a não ser para serem manuseados por febris epígonos fanáticos, eventualmente fazerem uma graninha para a família, os Nobres Livros do Autor Morto – servem para quê?
Posso favorecer a hipótese da utilidade tomando minha própria prateleira na foto como exemplo: aí estão minha vida em NY (os balcões mais baratos da Strand), uma ex (duas, melhor dizendo), um amigo perdido, a época em que queria ser tradutor, o momento em que parei de fumar (era 2008, janeiro, e estava lendo os Diários de Cheever), etc. Aí está também aquela história do Kelvin indo no Berinjela vezes sem conta e vendo o volume de cartas do Cheever e paquerando o livro sem comprar até que, anos depois, o Berna o enviaria pra mim – exatamente o mesmo livro, passando por dois amigos meus, e chegando a mim graças ao antigo dono, ignorado, sem nome pra mim, que um dia o depositou lá no Sebo – e como abriu mão das cartas de Cheever, em benefício de quê.
Aí está também, envolvido num papel pardo para proteger um pouquinho a capa, um de meus livros favoritos, o quarto exemplar que tenho do mesmo livro, Up in the Old Hotel, de Joseph Mitchell. Mitchell, que tinha uma paciência de Jó, escreveu esses textos maravilhosos, nos quais não se conta quase nada: são só umas histórias de tipos ordinários, que se fazem envoltos em mistérios vãos acho que mais pela força magnética que a noção de idiossincrasia exerce sobre nossa espécie que por qualquer outra razão. São histórias de quase nada, e todavia. Lembro de uma época em que lia os capítulos, ritualisticamente, toda terça e quinta à noite: eu não trabalhava nesses dias, e ficava grifando trechos e sonhando em escrever bem (eu também fumava, e nem pensava em parar). Lembro de minha melancolia ao ler Joe Gould’s Secret, e como me surpreendeu o fato de estar aparentemente mais tocado ao ler o texto pela segunda vez, tolamente surpreso por estar contrariando uma regra pseudocristã que dá sempre mais valor ao mais virginal (li esse texto em voz alta uma outra vez, lembro). E outro dia – está fresco, foi agorinha mesmo, agora no Natal – cheguei no hotel de uma visita a mil sebos, cheio de livros, feliz, e com mais um volume do mesmo livro de Mitchell. Deitei na cama, abri o livro e vi, então, a dedicatória.
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