ensaio

Elementos de Crítica Patética – I

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 23, 2015

O melancólico palimpsesto de todos os textos alheios nos quais você já meteu a mão: os infindos trabalhos escolares revisados, os pareceres inumeráveis, os emails, as manifestações, os ofícios.

A agoniada rede semântica na qual você se embaraçou: fiada por você, ano após ano, suas monotonias, sua incomensurável chatura enquanto ânsia de relevância.

Ó, tédio filhodaputa do eterno retorno do turno de fala. Da importância da literatura na formação do homem. Da memória cultural. Do hiato entre a experiência e o texto.

O que é a influência? O sujeito da escritura evolui. Programa de uma vanguarda.

Um instrumento sutil (ele não sabe aprofundar direito).

Uma banalidade corrigida.

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A mãe de Coetzee

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on outubro 18, 2014

Vi que saiu nos anais de um evento um ensaio que escrevi faz um tempo. O ensaio persegue coisas que escrevi há mais tempo ainda, numa resenha sobre Verão, de Coetzee.

Sei que o ensaio é ruim, falha: trata de um feijao com arroz que ja reiterei muito, e não tem a combinação que eu queria que tivesse de pressão hermenêutica e mão tranquila, que é o que vejo em ensaios de Alberto Giordano e, por trás dele, de Barthes, críticos que tieto e tento emular. A resenha acho boa: acho que consegui fazer funcionar a coisa na exiguidade com integridade, me reconheço na forma de ler; passaram-se anos e, embora torça o nariz pra certa grandiloquência que, hoje, leio ali, ainda a subscrevo.

Como acho que o livro tem valor, como se conecta de maneira muito frutífera com o que pesquiso, e como em pesquisa só deveria haver vergonha na má fé, mas nunca no erro, devo persistir escrevendo ensaios sobre esse livro e os outros manejos do biográfico na obra de Coetzee. O declínio evidente de sua produção, patente no último livro, me diz que seu fim de vida como autor será um de miséria da arte, arremedo de si mesmo e balbucios moles dirigidos à galera de fanáticos. Paciência: os Autores também tem o direito de declinar e morrer, inclusive em vida.

Quando apresentei esse ensaio no congresso, um comentário que um cara da audiência fez, um especialista em Proust que foi meu contemporâneo na UFMG, foi que eu devia ler o Clark sobre David. Eu nunca nem tinha ouvido falar desse ensaio, e imagino que só tinha ouvido falar (no sentido de “sei quem é”) do T. J. Clark por ter sido casado com uma artista plástica e professora de arte. Tipo, tinha texto desse cara pela casa.

Fui ler, e tem a ver mesmo: foi uma observação oportuna e enriquecedora, o tipo de coisa que ocorre às vezes nos congressos e que lhe lembra de uma das razões, talvez a fundamental, para sua existência: são espaços muito particulares de interlocução. O texto de Clark vai na chave De Man, explora o regime do biográfico via Rousseau e a prosopopeia: é, assim, também dieta comum pra quem trabalha com esse temário. Mas há algo no ensaio de Clark, um investimento em estratégias de deformação, que vale muito como paralelo para a leitura desses textos (auto)biográficos do Coetzee: uma exploração da maneira como David representa a si, como se autorretrata, sua bochecha inchada evidente e relativizada, subalternizada pelo olhar que tanto solicita de quem vê.

Uma coisa que me atraiu muito foi como Clark circunda o que parece ser o centro do problema: como ele evita a peremptoriedade analítica da declaração e opta por lhe reconduzir, de novo e de novo, ao problema da descrição do quadro, tornando com isso a conclusão uma espécie de suor do trajeto de abordagem. Achei magnífico. Clark, depois, escreveu um livro no qual descreve o que vê ao longo de um ano em que passou visitando um mesmo quadro de Poussin todos os dias, uma espécie de diário da visão. Crítica é isso, pensei, e agora penso, achando que penso melhor, Crítica pode ser isso, também.  No documentário de Dick e Kofman sobre Derridahá um momento em que o entrevistador pergunta a ele Em filosofia, quem é sua mãe?  Derrida, que não parece hesitar nunca, que parece sempre estar acessando um arquivo pronto, de pura disponibilidade, fica claramente perplexo: está diante de uma pergunta inédita, nova não apenas no sentido de “nova nessas situações de entrevista, em que o clichê predomina e sempre se pergunta variantes do mesmo, o mesmo sempre sendo uma forma do óbvio”, mas também no sentido de “putaquepariu, nunca pensei isso”. Já assisti esse documentário três vezes, e é um momento sempre maravilhoso pra mim, e agora mesmo constato que não tenho a menor lembrança de qual a resposta.

 

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Ratos diversos

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 26, 2014

Emputecido com aquele sacana, pensei Porra, que rato filadaputa!

Momento menor, ato reflexo do pensamento e, portanto, irrefletido: faux pas semântico, pois assim insultava o rato, toda a espécie, e nada mais.

Me ocorreu que há um momento no Diário de Manhattan, de Néstor Sanchez, em que ele menciona um rato do Harlem. O diário, sabemos, consome pouco tempo na vida de Sanchez, no início do inverno de 1975, e consiste em anotações muito breves devotadas principalmente ao sucesso de seus exercícios físico-espirituais, aprendidos com Gurdjieff (sendo destro, só escrever com a mão esquerda; em hipótese alguma cruzar as pernas; carregar os pertences em uma sacola, mantendo sempre as mãos livres; nos sonhos, tentar ver a própria mão, etc). Me afeiçoei muito a esse texto, nem sei a razão, o que talvez fale de uma verdade do afeto que justifica meu retorno ao texto, minha certeza de que o texto me diz algo, e continua dizendo a cada leitura. Há um diálogo platônico no qual se diz, como um elogio à fala, que um texto escrito, ao ser interpelado, sempre lhe responde o mesmo: vê-se que Platão era um asno ou, no mínimo, péssimo leitor.

Aqui está Sanchez, em Manhattan, com muito frio, e se propõe, como um exercício, a passar uma noite no Harlem, na rua, dormindo na rua – ou, pelo menos, sobrevivendo à noite na rua. Não é sua Nova Iorque hipster e asséptica: é 1975, uma cidade suja e putona, o cenário de Taxi Driver, a Times Square comentada por Delany em Times Square Red, Times Square Blue. Então tem esse sudaca doidão: é um homem que ignorou seu único filho por mais de vinte anos; é um autor que tinha sucesso, foi resenhado positivamente por Cortázar, imaginem o que era isso em 1971? Mas Sanchez caga pra tudo e, cheio de lances espirituais levados muitíssimo a sério, vai passar a noite no Harlem:

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O vandalismo, sobretudo em crianças e jovens, é comentado com frequência como um grave problema nacional. Não há dúvida: visitando ontem a universidade, impressionou o espétaculo da esficácia destruidora em tudo, de novo o alarde da feiúra, somado à grosseria e ao grito de tudo. Vida neurótica do homem americano, que se proibiu o sussurro. Inconstância neurótica, ninfomaníaca, da mulher americana, que se proibiu o desejo futuro.

Tentando dormir no Harlem; primeiro, me aproximei de um latão de lixo em que improvisaram uma fogueira, fisionomias hostis, não fui bem-vindo. Impossibilidade do gesto solidário, subhumanidade. Em um beco, me encosto em uma porta que parece não ter sido aberta há muito tempo, e a temperatura, aqui, está melhor. Quando me aquieto e começo a me aquecer sinto algo e, levando a mão às costas, toco um rato, querendo também se aquecer. Nenhum temor de parte a parte.

“Nenhum temor de parte a parte”: esse trecho poderia ter sido o alvo de um comentário de Levrero em seu “momento rato”, no Diario de un canalla — ao falar de seu oposto, está falando da mesma coisa. O incidente funciona como uma espécie de parêntese à inauguração do leitmotif das pombas, que vai percorrer quase tudo que Levrero escreve desse texto até o fim, e que vai protagonizar a deriva de La novela luminosa. É também um dos raros momentos em que se tematiza, de maneira algo positiva, a condição filial: em Levrero o filho é estorvo (Juan Ignacio, em El discurso vacío), ou invisível, está à margem, não faz tema (sua filha, anônima, que recebe parte da bolsa Guggenheim, que tem um filho, em La novela luminosa).

Ora, se as pombas são anúncios do Espírito, o que são os ratos? Diante da resposta fácil (seu anátema), Levrero faz o que sabe fazer: presta atenção, descreve o que vê, e é melhor nem dizer mais: vejam aqui o que aparece quando, depois de passar um tempo brincando com a ratazana que apareceu em seu quintalzinho no prédio da Rua Rodríguez Peña, percebe que a cada movimento de aproximação que faz, o animal se esconde, mas sempre deixa a cauda fora do esconderijo:

Esse detalhe de sua ingenuidade despertou, mais que qualquer outro, uma ternura infinita em mim, uma ternura quase insuportável. Vi naquela ratinho um menino, com toda sua inteligencia, mas também com toda sua falta de experiência de vida. Quase diria que vi ali um filho. E isso que escrevo agora me umedece os olhos, me faz arder os olhos.

Por fim, há meu rato favorito na História da Literatura – uma descrição magnífica da amizade, do afeto, da gentileza gratuita e recíproca – que aparece num dos trechos do diário de Jules Renard que foi depois recolhido no Histoires naturelles. Renard está só em La Gloriette, é noite, e ele escreve: escreve precisamente a página que estamos lendo. A cada momento em que começa a escrever, percebe que um som parece fazer eco ao rangido da pena na página. Para de escrever, o outro som para; volta a escrever, o sonzinho volta. É só um murmúrio de um eco, mas há intenção, supõe Renard. Imagine o lampião, imagine o silêncio, o gradual teste empírico de hipóteses, até que Renard se dá conta: é um ratinho, roendo o pé da mesa. No silêncio total, o rato, ressabiado, espera. Mas quando há o som da escrita, o rato rói, tranquilo, a mesa, e se conforta, e Renard continua escrevendo, e nos descrevendo isso, e comenta que o rato, mais confiante, se aproxima, e começa a roer o seu tamanco.

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Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on novembro 28, 2013

Aqui está Barthes, olhem a cara dele:

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Barthes, desamparado, perplexo, coitado. A foto está no Barthes por Barthes, e sua legenda graciosa é “Tédio: a mesa-redonda”.

Ontem, tentando arrumar as gavetas de quatro anos de trabalho em um setor da universidade que há pouco deixou de ser o meu, encontrei anotações de eventos, de mesas-redondas, de bancas. Há muita coisa no espectro emocional ali consignado, mas não “tédio”. Aparece, antes, “desperdício”, e a ideia reiterada de tempo jogado fora, de dispêndio vão de si. Aparece o patético: dos outros, em sua vaidade e auto-elogio: não sei como vou aguentar ainda mais vinte, trinta anos de carreira em torno de pessoas tão grosseiras a ponto de não perder uma chance de repousar um louro a mais na própria coroa, gente que tem a si mesmo e suas glórias como assunto predileto, usurários usurpadores inclementes do lance fraterno e solidário do ouvir. Quanto charlatanismo, quanta ânsia de protagonismo, quando desejo de ser amado, adorado e louvado. Para isso, não seria tédio a resposta, mas a pouca utilizada referência à gastura é que me pareceria própria: está gastando essa chateação, não se quer mais ouvir. O que se elogia estou condenando agora a um inferno de prolongamento da própria voz, e ao consumo da hóstia consagrada da bajulação de sua beleza, excelência, invulgaridade. Ao raio que o parta. 

Aparece nessas notas também o patético de si, em ponto menor, pois assim como os falastrões supracitados me julgo mal, sei menos de mim do que talvez devesse, e me dou a direitos, como me impacientar, me irritar, demandar, exigir, aplicando régua ao mundo, ah, mundo melhor o feito por mim. Então, como ontem, leio a mim mesmo e penso Ridículo!, e me acho coberto de razão, errando de novo, evidentemente, talvez pelo peso de abusos e excessos praticados ou sofridos alhures.

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on julho 28, 2013

Já faz alguns meses que ele vem estudando anotações: entrou numas de que há algo de interessante aí, nesse tema, a anotação. Menor que isso, só a ideia, o embrião mais absoluto, desmaterializado e impenetrável que há. Na anotação há alguma coisa sobre a abertura do pensamento para sua incidência: ao se esfarelar na página pela primeira vez, a inteligência ainda vem atracada com as gosmas atávicas do nascedouro, e sem elas ele crê que nada de interessante haveria, nenhum pensamento, nenhuma inteligência na escrita, só casuística e vaidade.

Essa torção é bastante óbvia, pois passou a vida escrevendo anotações, seus caderninhos, sua grafomania. Assim, agora que faz quarenta anos começa a se ocupar dos cadernos alheios, das anotações alheias, e de uma contemplação de algo que, por incapacidade de forjar um termo melhor, sai dizendo que é “método”, “metodologia”, como em frases tipo Tô estudando o método de leitura de Barthes, ou Tô tentando escrever um ensaio sobre o método de Benjamin. O anotador vira estudioso da anotação: o óbvio e o obtuso, amigos para sempre, se resolvendo em dissolução gozosa recíproca enquanto ele almeja algo que se assemelhe à saída do evidente e ao fim momentâneo da burrice, nem que seja pela visitação obstinada da inteligência alheia.

Estava, assim, às voltas com o Caderno N, o famoso momento epistemológico de Benjamin no trabalho das Passagens, uma coletânea de protocolos táticos, de instruções a perseguir, de dicas de procedimento que Benjamin escrevia como quem escreve lembretes a si mesmo. É notável o desvio que essas observações tem à medida que uma certa prestação de contas com o Marxismo se torna mais frequente: a intensidade sinuosa do início do caderno cede a uma pressão externa que torna a escrita mais arrevesada e poliédrica, mas ao final dos escritos a máquina delirante está a todo vapor, celebrando o próprio naufrágio com comentários tão voluptuosos que fazem uma menção a Sainte-Beuve parecer um grande juízo de propriedade anacrônica, quando o que está disposto ali tem apenas um indício em Sainte-Beuve. É a inteligência de Benjamin que o impressiona, é Benjamin escravo de seu próprio pensamento, chaga e profecia, ferida que lambe em eloquência, em uma sala na Biblioteca de Paris, em um minuto de silêncio na escrita de mais uma ficha em que olha pela vidraça para Paris e uma refração demonstra todos os tempos que consumam seu interesse em um átimo, tudo fugidio e incapturável, tudo morrendo e uma sinfonia de estertores que clama dos livros e da rua distrai Benjamin, o roubou de suas notas por um momento, até que ele voltasse o rosto para a mesa, o livro, o caderno, a ficha, a nota. Ora presunçosa, ora escolástica; Eu amava tudo aquilo que é falho; Assim como Proust; Assim como a folha; Despertar:  como ficar imune a essas palavras? Como tratar esse negócio como matéria de exegese no século XXI sem ceder à estupidez grotesca do esforço de didatização nem ao voluntarismo arrivista do uso? Puta merda, pensa – e, dessa vez, quem se distrai é ele, recordando um incidente ocorrido há alguns dias que o contaminou e perturbou muito e até agora está aqui, interferindo em seu estudo, em sua leitura, sequestrando o momento passado com Benjamin. No decorrer de uma avaliação final de doutorado, uma professora adentra a sala de defesa e, na audiência, começa a conversar com uma aluna. As conversações perduram, a professora ri. O doutorando hesita, em seu transe semi-apoplético, na exposição: não sabe também o que fazer, parece admirar a professora que fala sem cessar, histericamente, e ri, enquanto apenas a aluna dirige seu olhar à mesa onde se senta a banca, como uma criança que convoca os adultos na hora da traquinagem, como alguém que erra com consciência de que está cortejando a admoestação. Não é uma grande defesa, em hipótese alguma: é um exercício no qual o que tropeça no texto examinado se traduz em titubeio e insistência e reiteração, mas nunca em revelações de improviso que carregam a força dos anos de estudo para uma incandescência da hora, propiciada pelo exame, convidada pela arguição. É, em todos os sentidos, um evento morno, assim como é morno e protocolar seu desempenho, seus comentários atenuados, seu tédio. Mas há algo no comportamento da professora que conversa na audiência que parece sal na ferida, e há algo também no orientador, que preside a mesa, e que hesita e parece temer fazer uso de uma assertividade que a situação, imagina, solicita.

Que desrespeito!, pensa, indignado. O que essa mulher está pensando? Onde essas pessoas estão com a cabeça? Tem vergonha de seus alunos, presentes, observando o descalabro, e lamenta, lamenta, lamenta mas, por mais que lamente, efetivamente não sabe o que essas pessoas estão pensando, estavam pensando, estarão pensando. Sabe, todavia, que uma espécie particular de miséria o tragou ali, e lê repetidas vezes as repetidas vezes em que Benjamin escreve, como conclusão de uma anotação, Despertar, e lembra, por causa disso, de um trecho do Rua de mão única, que se dá ao trabalho de consultar, e que vê na consulta que estava bem lembrado, que se lembrava do trecho quase certo:

Todas as manhãs o dia está aí, como uma camisa lavada em cima da nossa cama; esse tecido incomparavelmente fino e incomparavelmente resistente cai como uma luva. A felicidade das próximas vinte e quatro horas depende da gente saber ou não agarrar esse tecido na hora de acordar.

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Em Julho de

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on julho 15, 2013

Em Julho de 2013 decidi voltar a escrever posts aqui: poucos, como sempre foi, e com minha pausa habitual, pois não sei de outro jeito, só tenho esse jeito, lamentavelmente. Queria continuar o que comecei no último post: escrever sobre os bastidores do trabalho de resenhista – escrever sobre o que poderia ser pedantemente descrito como a poética de um gênero menor ou, com menos pedantismo e, provavelmente, mais felicidade, sobre o caminho entre o desejo de escrever sobre um livro, a demanda do jornal, a leitura do material e o que enfim é publicado como resenha. Isso me interessa por várias razões – há meu trabalho como professor, que sempre passa por aí, por algo da ordem do processo de fatura de textos que comentam matéria literária; há a celebração de um momento menor e quase sempre privado ou de pouca audiência, que está acontecendo o tempo todo, ruído branco na comoção geralmente histriônica do campo literário; há meu interesse por coisas fudidas pras quais pouca gente presta atenção. Dessa vez, ia comentar a última resenha que publiquei, e como o resultado nada revela – e, na verdade, veta – o monte de peripécias em torno dessa publicação. Ia falar sobre como descobri a autora e como a expressão “Estudando Lydia Davis” virou uma piada doméstica; falar como fiquei satisfeito ao saber da tradução, e como aporrinhei o pessoal do jornal para que pudesse resenhar. Depois, introduzindo alguma quebra no texto, ia contar como o prazo final pra resenha me pegou na nossa grande quinzena das manifestações, e como tudo se atrapalhou, todas as vontades e planos e direcionamentos cotidianos, e terminei pedindo adiamento ao editor, e enfim produzindo a resenha de uma sentada, no último momento do último dia de prazo que eu tinha. Falaria, concluindo, como essa pressão particular provocou certo tipo de relaxamento e esquecimento, que talvez tenha se traduzido em um texto mais arejado; comentaria como o texto muito lido e conhecido se incrusta na memória, e na exigência do comentário se transforma em outra coisa, uma espécie de fruição às avessas; falaria que, ao terminar a resenha, pensei em comentar o caso com os alunos, aludindo à conexão, nesse trabalho, entre cumprimento de prazo e reputação, e falando das moedas morais que correm no campo literário (e isso, pelo menos, terminei fazendo mesmo).

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Tudo falido, pois sobre nada disso consegui escrever. Até tirei foto das fichas que usei na resenha, pensando em reiterar um comentário que vivo fazendo sobre as etapas da fatura e a fatura da anotação, mas mesmo com esse tipo de gracejo a la Barthes a coisa se provou demasiado lisa, volátil, chata, e capitulei. E depois, lendo, me interrompi voltando ao problema da razão do não escrever. De onde vem a dificuldade?, pensei. Lembrei de blogs como os do K e o do Monte: mil diferenças entre os dois, mas em ambos o exercício do muito, não apenas ler muito mas muito escrever sobre o lido, quase diariamente um post, mais um texto feito, algo dito. Mesmo o Ad Man, que tanto admiro, e que trabalha numa cadência mais esporádica: não dou conta.

Eu naufrago nessa abundância: não tenho, nunca tive tanta força, nem tanto desejo de escrever e de dizer – e aí talvez seja o caso de pensar que força e desejo são sinônimos. Escrever me dá um trabalho do cão – ou então escrevo algo que sequer tem valor para mim, que sou o juiz mais laxista de mim mesmo (que saco cheio de autores elogiando seu altíssimo crivo crítico: você é sempre, necessariamente, o pior juiz do que escreve, o mais incompetente de todos, o ridículo-mor). Preciso de muito desejo pra escrever, pensei. E o que fazer quando não encontro esse desejo? Ou o que fazer quando, malgrado o desejo, o texto se cancela, e infelicita, a cada passo – pois todo texto aparece in media res, e sua vida está a caminho, paralela e incidental, mas o texto é também seu trabalho, e nesse seu trabalho se depositam, embaraçadas, sua reputação, sua vaidade, seu juízo de valor e excelência. No meio da frase que eu queria formular e não produzi está a força da falência do que ela nunca iria conseguir dizer – está também a minha filha doente, meus problemas de dinheiro, meus pseudo-amigos vermes, o reaparecimento do autor-pateta que há anos me escreveu mensagens risíveis por uma resenha ruim que publiquei de um livro dele, os trezentos outros planos que me carregam para mais e mais textos que vou escrever, que não vou escrever, até, é claro, de um jeito ou de outro, morrer. Pensei naquela frase que atribuem a Foucault, “Como faremos para desaparecer?” Não há problema, pensei, Isso tá garantidoNão vou escrever mais nada. 

Em maio de

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 12, 2012

Em Maio de 2009 José Miguel Wisnik veio a Salvador para cumprir uma agenda que, de alguma maneira, passava pela Universidade e pelo grupo de pesquisas com o qual eu trabalho. Eu tinha de fazer umas perguntas para uma entrevista com ele e fiz mas,  quando a entrevista aconteceu, aconteceu sem mim pois, como de costume, lá estava eu, atrasado e aflito, depois da hora até para ter alguma serventia pra mim mesmo.

Hoje, folheando os cadernos aqui querendo achar um negócio que escrevi sobre o Costa Lima, sobre aquele texto do Costa Lima sobre o sistema intelectual brasileiro ser baseado na oralidade etc, encontrei as perguntas:

1. Numa entrevista com Idelber Avelar, você descreve Antonio Candido como  sendo não Romântico, mas Iluminista. É curioso observar essa antinomia sugerida em uma configuração que tomamos como definindo antes o semelhante que o diferente, e muito menos o oposto. Quero dizer: cabe a Iluministas e Românticos sugerir que a forma atual das coisas não é matéria de necessidade e sim de ocasião e, por essa via, indicar que o futuro pode ser diferente do presente. A rota do “Esclarecimento” seria um dos propiciadores dessa transformação, e a rota do “poeta forte”, daquele que encarna em seu ethos e seu modus operandi a forma das coisas que virão, também o é. Mas você está, ao que parece, valorizando diferença, valorizando distinção entre as noções: a que vem isso? Que diferença isso faz para como se lê Antonio Candido?

2. O uso do Pasolini no Veneno Remédio, como você diz, na p. 119, “o esquema de Pasolini, tão simples quanto estimulante pelas perspectivas que abre”. Há uma travessura interessante aqui já que, inclusive pela época de sua fatura – início dos anos 70 – a estratégia de captura dos fenômenos culturais pela semiologia era a bola da vez. Há muita graça nas analogias propostas por Pasolini entre a assinatura, o estilo de certos jogadores e alguns focos interpretativos manjados que usamos na crítica literária: Fulano joga como um poeta maldito, Beltrano joga como um ensaísta, Sicrano joga em prosa poética e o esquema de jogo do técnico Mengano é obviamente decadentista. Etc Ora, seguindo nessa direção, mas torcendo o esquema um pouco e torcendo pra que você acolha jocosamente a condição de sinuca que para você pode estar se avizinhando, o que você faria em termos de um improviso associativo com o campo da produção e da crítica literária brasileira? Quem seria o Didi em nosso campo crítico, quem seria o Garrincha, quem o Pelé, o Serginho Chulapa, o Edmundo Animal, o Ronaldinho Gaucho? E o Zico?

Javier Marías, Balzac

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on junho 12, 2011

Hoje ia fazer uma prova sobre a trilogia do Javier Marías – que, como vocês sabem, não li. Não tinha medo: planejava improvisar, usando o que já li do Marías mais o que já li sobre, achei que com isso ia dar conta.

Cheguei e, como de costume, havia toda aquela liturgia na biblioteca, a arrumação dos dias de exame, o silêncio. Quando estava já pra começar a escrever, entrou no salão um homem de uniforme, um guarda, e trocou algumas palavras com o supervisor que, imediatamente, apontou para mim, assentindo com a cabeça. O guarda se aproximou, me abordou, confirmou meu nome, e me disse que eu precisaria retirar meu carro, que estava obstruindo o trânsito.

Obviamente, me atrapalhei, me esbafori e me apressei, saí correndo para tirar o carro logo e voltar o quanto antes, a tempo de ter tempo para fazer o exame. Mas ao retornar a biblioteca parecia ter se desdobrado em várias outras, uma infinidade de salas e corredores e escadarias semelhantes que nunca me levavam à minha sala, ao salão de onde eu tinha saído, onde me esperava meu supervisor, meus colegas e, em minha mesa, minha folha de exames com meu nome, minhas canetas, tudo de que eu precisava para escrever minha dissertação sobre a trilogia de Marías. Perguntei a uma pessoa que lia no corredor sobre o teste e ele fez um gesto em direção a uma sala e me disse Aqui é sobre Balzac. Caminhei mais, a luz baça dos vitrais no corredor, apertei o passo para alcançar uma moça que caminhava à minha frente e perguntei a ela sobre a prova e ela disse Eu também tô indo pra lá, tô atrasada, é no salão, sobre Balzac, não é?

Derridabase 2.0

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 4, 2011

O meio de uma manhã de Maio de 2011: ele está preparando aulas.

Essa denominação vulgar obscurece um procedimento muito idiossincrático que é, algo paradoxalmente, um dos esteios de sua profissão – que é, por sua vez, uma profissão que é tomada como dado, como envolvendo um saber que todos tem, sendo algo que todos podem. Em um certo sentido isso está correto – mas é também parte do resumo grotesco de incompreensão geral que envolve esse que é o seu trabalho, no qual ele está envolvido nessa manhã.

A certa altura, ele hesita. Devo discutir Derrida aqui? O debate que pretende travar com os alunos hoje circunda as relações entre etnografia e estruturalismo, então talvez valha a pena recuperar algo de “A estrutura, o signo e o jogo”, de Derrida. Ele vai à estante, procura o livro, não acha, perturba sua mulher, encontra o livro, o abre, e começa. Mas, ao invés de continuar procedendo como procedia – lendo pela enésima vez esse texto, destacando trechos em uma ficha que depois vai organizar em um esquema em outra ficha, que depois vai reproduzir no quadro e que vai utilizar como recurso mnemônico e norteador da discussão – desliza e divaga para o seu primeiro encontro com esse texto, na época do mestrado, há mais de quinze anos.

O que era esse texto para ele, então? Um enigma, uma foice a recolher de um golpe só suas entranhas, sua suposta inteligência, sua capacidade de se defrontar com o desconhecido reduzida a uma cabeça de fósforo, tudo reduzido à sua devida insignificância hermenêutica.  A primeira vez que ouviu uma menção a esse texto ocorreu no meio de um discurso inflamado de uma professora, uma cientista política de quem não ouve falar há muito, muito tempo, mas que sabe que se aposentou cedo, nunca terminou o doutorado e mora, se ainda vive, no interior. Essa mulher tinha uma têmpera única, ele nunca viu de novo aquele tipo específico de condução da energia em uma discussão: qualquer conversa podia se transformar em um debate, e um debate era sempre um engalfinhar-se, mas era como se houvesse uma alegria de fundo, um automatismo como o do riso quando vem, inevitável, irresistível, no fim de uma piada. Uma vez ela disse Vendi todos os meus livros e deixei só uns de Foucault; outra vez, perguntou Ora, você não está levando isso a sério, não é, rapaz? E se você não está levando a sério então porque é que tá levando, hein? E ele, obviamente, nada soube responder.

Essa foi a mulher que uma vez lhe disse Ficam aí discutindo como se Derrida nunca tivesse escrito A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências sociais, ficam aí tergiversando como se isso fosse nada. Essa declaração, em sua força enigmática, oracular, o inquietou enormemente – e lá foi ele, contrito e cdf, procurar ler o que deveria já ter lido, sempre atrasado e aflito, sempre atrás de si mesmo, demasiado lento pra ser eficaz ou achar que está em sintonia certa com seu tempo, suas necessidades, tudo que é imperativo saber para ser. Essa primeira leitura, realizada na biblioteca da universidade, incompreensível, não foi menos oracular que o proferimento que o havia levado à leitura – e foi ela que retornou hoje, enquanto ele preparava sua aula, pensando no que debater com seus alunos, quinze anos depois de todos esses incidentes, sua memória cheia de lembranças e nomes desses personagens perdidos com os quais conviveu e que foram remexendo nele como se fosse de barro, como se ser jovem fosse o mesmo que não ter nenhum formato, nenhum livro de Foucault a preservar, a menor consciência do que disse Derrida, e na verdade nada a dizer.

O que era isso, considerando o ensino?, ele pensa, O que ela estava, de fato, ensinando? Pensa isso e, rapidamente, descarta, isso não é interessante, não é sempre que se ensina, muito menos que se aprende – essas coisas na verdade são difíceis, remotas, e adventícias, provável efeito colateral de uma outra coisa, um enigma mais vasto, talvez mais interessante, mas a hora avança, a manhã se consome, o tempo passa e a aula chegou – e nela, evidentemente, nada disso foi dito.

I am Assange

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on dezembro 9, 2010

Muitos vão duvidar, assim como eu duvido agora de mim mesmo, mas vou mencionar Saramago laudatoriamente, utilizá-lo e, com isso, enviar meus leitores à leitura dele. O que, convenhamos, não é de todo mau.

O caso está em A Jangada de Pedra, que foi o primeiro livro dele que li, em um verão bem distante, quando ainda dividia apartamento com Dick Noir, e que li por recomendação dele. O mote do livro, sabemos, é que a península ibérica se descola do resto do continente – fica aí, uma massa de terra, o que se faz com ela, aterrorizando o Atlântico, solta. Há um belo momento, quando a ficha cai, os Europeus se apercebem do que está em jogo com a península à deriva e, como sempre, nas engajadas universidades parisienses começam a dizer Eu também sou Ibérico. O que, entendi, queria dizer Eu também sou Outro, ou Sem o Outro não sou eu – algo dessa ordem. É lindo, é uma apoteose, um florescimento. Se esgarça, obviamente, o livro tem outros destinos, o Autor deseja, nesse caso creio que desgraçadamente, muito mais. Mas é uma onda, é emocionante, e também diz algo, pois o incidente está repleto daquilo que faz com que ainda hoje falemos “Maio de 68” – há aí coisas ditas, coisas feitas, e fermento imaginário e conversacional fazendo o evento crescer e se sedimentar como um fato que sempre ultrapassa o slogan que, supostamente, o define.

Para comentar e situar o caso específico do Wikileaks e da prisão de Assange, não poderia fazer nada melhor que o Avelar já fez aqui – como sempre com a bala na agulha, ele organiza o incidente em uma narrativa, faz do bruhahá um fio na trama do presente, e com isso nos ajuda a produzir sentido e encontrar um lugar na narrativa também. Um lugar que pode ser esse, de dizer Eu sou Assange, Eu  também sou Assange. Isso, em meu caso, quer dizer que não tive a vida aventuresca e heróica que ele teve e tem, e que não estou na berlinda como ele está – mas que há algo de empatia entre o que eu julgo justo e bonito fazer e o que ele passa a ser quando, a respeito dele, podemos dizer coisas assim. E Herói é pra isso mesmo.