Um poema
Gente na ponte
Wislawa Szymborska
Estranho planeta e nele essa gente estranha.
Sujeita ao tempo, não o reconhece.
Tem seu jeito de expressar seu desagrado.
Faz pequenas pinturas assim como esta:
Nada especial à primeira vista.
Vê-se a água.
Vê-se uma das suas margens.
Vê-se uma canoa forçando seu curso contra a corrente.
Vê-se uma ponte sobre a água e vê-se gente na ponte.
Essa gente claramente apressa o passo,
porque de uma nuvem escura
começou a cair uma bruta chuva.
A questão é que ali nada mais acontece.
A nuvem não muda a cor nem a forma.
A chuva nem aumenta nem cessa.
A canoa navega sem se mover.
A gente na ponte corre
no mesmo lugar de ainda há pouco.
É difícil passar sem um comentário:
Esse não é de modo algum um quadro inocente.
Aqui o tempo foi suspenso.
Deixou-se de levar em conta suas leis.
Foi privado da influência no curso dos eventos.
Foi desrespeitado e insultado.
Por causa de um rebelde
um tal Hiroshige Utagawa
(um ser que por sinal,
como sói acontecer, faz muito que se foi),
o tempo tropeçou e caiu.
Talvez seja só uma simples brincadeira,
uma travessura na escala de um par de galáxias,
em todo caso porém
acrescentemos o seguinte:
Tem sido de bom-tom há gerações
ter a obra em alta conta,
deslumbrar-se e comover-se com ela.
Tem aqueles para quem nem isso basta.
Ouvem até o barulho da chuva,
sentem as gotas frias no pescoço e nas costas,
olham a ponte e as pessoas,
como se lá também se vissem,
na mesma corrida que nunca termina
na estrada sem fim, eternamente à frente
e acreditam, na sua desfaçatez,
que de fato é assim.
Tradução de Regina Przybycien
Bovarismo, 2666
Como é do conhecimento de vocês, a questão do Bovarismo me interessa; creio que é uma espécie de consequencia fatal da leitura de ficção, um efeito colateral incontornável e, talvez, um elemento necessário na produção do desejo de ficção – seja de sua leitura, seja de sua produção. Há anos faço anotações sobre isso, partindo de uma observação inicial de Piglia, que em um texto conhecido alude ao célebre abraço no cavalo de Nietzsche em Turim como uma instância de bovarismo. Venho compilando eventos, incidentes, observações e citações ligadas ao tema – venho ensaiando escrever um ensaio que redescreva e recupere o termo, colocando-o, na circulação conceitual sobre ficção contemporânea, como parceiro de noções como “pastiche” e “auto-ficção”. A coisa, afinal, é simples, e parece útil justamente por isso: lemos e, tendo lido, balizamos nosso contato com a suposta realidade de maneira diferente – eventualmente, nos esforçamos para produzir conexões entre o lido e o feito; eventualmente testemunhamos essas conexões sem que nossa agência tenha sido necessária para produzi-las.
Há o clichê Uma imagem vale mais do que mil palavras etc. Obviamente, considerando minha amizade com as palavras, me disponho a discordar, a César o que é de César, uma imagem diz umas coisas, um texto diz outras, um beijo não anula o outro, e a camaradagem continua. Eis, portanto, a inacreditável imagem:
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