ensaio

Um problema

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on setembro 17, 2014

Andei pensando no seguinte problema:

Quando estou considerando narrativas habituais, tenho um pacote de categorias que aplico para sua descrição e análise. Um exemplo, aqui. A narrativa, e as categorias que utilizamos para lidar com elas, são criaturas do hábito, tradicionais, conhecidas.

Quando estou considerando narrativas excepcionais, extraordinárias: o que é que eu faço?

Eu tenho um problema.

Vejam aqui, por exemplo, o que George Saunders faz para comentar Daniil Kharms: vejam o comentarista se atribulando. A certa altura, ele diz: No processo de martelar um prego, Kharms faz evaporar seu próprio martelo.

Isso, aqui, está como crítica, e é certo que esteja: é comentário de literatura, e além do mais feito num jornal, para informar mas também para vender livro que acabou de ser lançado.

Mas o negócio também tem uma outra vida, que não é a vida vicária que via de regra atribuímos à crítica. A doideira de Kharms provoca um negócio na doideira de Saunders: rua de mão única, um vem ao encontro do outro, rola um aperto de mãos aí.

kharms

 

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on abril 25, 2014

Era uma vez um corvo de quatro patas. Ou melhor, cinco. Era corvo, mas queria ser pica-pau. Ou melhor, humano. Imaginou, de acordo com Maiakovsky, que, se em algum lugar, talvez no Brasil, havia um homem feliz, ele seria então, por força da sua grande e obstinada Vontade, brasileiro – e, ademais, ficcionista, pois inventou a si mesmo. E assim se fez mais um, um ex-corvo branco, aliás, pica-pau sem bico, humano sem ânus, uma flor do futuro nascida no presente. O narrador tinha esquecido de lembrar ao leitor que o nosso era um corvo branco: era sim, o que era uma vantagem, e não um handicap: assim se pode gozar as benesses melancólicas da corvidão e, ao mesmo tempo, posar de ganso. Corvo, sim, sempre – mas com alma de cisne! Lá vai ele, puro brio, cinco pernas, amolando as garras no feno, cheirando a parte interna das unhas e o próprio cabelo.

Um presente do futuro, uma revolução de um só, música mística revelada nos florilégios de seu estilo middlebrow consciente de si mesmo, sábio, ágil, um escritor de cinco pernas, corvo, Autor. Nas reuniões da Associação de Autores, está mais ao centro do que você imagina: penetrante e oportuno, dirigido à via media de todas as opiniões. Mas, na dúvida, pede desculpas, nosso autor corvo, Me desculpem vocês, mas eu gosto muito de X. Ou Não se ofendam, mas a verdade é que aprecio. Ou Não é para causar controvérsia, mas venho estudando com afinco a Obra de Z. E assim sucessivamente, em seu mavioso chilrear, segue o poeta de novas massas. Escolheu cuidadosamente a indumentário, sopesa com olho de ourives sua opinião de ouro, forja perene de jóias seu juízo crítico, que é pura mansidão, luz, abraço amigo aos amigos, muito fiel, a defender.

Ora, eis que um dia, na hora mais crepuscular de uma certa Weltanschauung, estava nosso personagem roendo as avelãs alheias e bebendo licor artesanal, nessa apoplexia toda particular dos semifamosos, quando se engasga com um noz de bile. Imediatamente, Renard, O Raposo, que já fazia parte da história mas apenas como pano de fundo e não tinha ainda dito seu nome, apareceu, como sói, célere e fagueiro e comeu seu olho. Hmmmm… Que gostoso!, disse Renard. Adoro um olhinho de menino literário, yummy yummy. Furtivo e dietético, considerou se deveria degustar o outro olho mas, à mineira (Renard é um Universal), lembrou que quem come e guarda come duas vezes, inclusive cu, então hesitou, e disse Ah, foda-se. Ou melhor, pensou. Mas, como aqui ninguém diz nada, tampouco pensa, na verdade tanto faz. Na verdade, ou no conto.