ensaio

Cecil Taylor

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 10, 2014

Venho lendo e pensando sobre Cecil Taylor ultimamente. Venho nos ultimos anos, na verdade – mas, nos ultimos dois, tres meses, por conta de um ensaio que planejo escrever sobre César Aira, Cecil Taylor tem aparecido mais.

Um domingo, fim de tarde, eu estava vendo o programa do Arthur da Távola, Arte de ver, arte de ouvir.  Eu devia ter onze, doze anos, então isso é uma lembrança de 84, 85, e esse programa é tão remoto que não achei nada no youtube, nenhum vestígio. Imagino que foi algo que peguei com meu pai: que meu pai estava assistindo isso algum dia, algum fim de domingo, e fiquei ali, junto, e assim fiquei com a lembrança de ver o programa. A ideia de se tratar de um hábito pode muito bem ser fictícia, pois há impressão de regularidade, mas de lembrança do programa tenho apenas uma vaga recuperação geral: exposições do Arthur da Távola, comentando alguma obra, algum autor, seguida de um momento em que o título se justificava. Lembro, assim, de incidentes, de lances do programa, e de alguma maneira da proximidade de meu pai – mas mais adiante comentarei mais sobre certa improbabilidade aqui.

Um dos incidentes passa por uma exposição longa a respeito de Itzhak Perlman, e o Arthur da Távola falava algo sobre os dedos gordinhos do Perlman, do cenho, das expressões no rosto – e a isso se segue, acho, a execução de algum movimento de um concerto de Beethoven. E em outro incidente ele fala de Cecil Taylor e – disso lembro vivamente – diz como Taylor encarna o artista, e é como se ele estivesse falando em maiúsculas, e ele diz “as mãos, a postura, o cabelo, tudo”. E então vejo Cecil Taylor, numa televisão Telefunken, num apartamento de um conjunto habitacional do BNH em Salvador. E, como talvez dissesse Barthes a respeito de algo semelhante, “Isso pega”.

Mas o que mesmo? É, como disse outro dia aos alunos, o estranhamento. É ostranenie, é isso: a ruptura fica, marca, e perdura. Da música, não faço ideia e, mesmo hoje, 25 anos depois, tendo já ouvido o diabo, ranjo os dentes ouvindo essa musica: como se para ela não houvesse aprendizado na mesma medida em que não há esquecimento. Começo a ouvir, ranjo os dentes, interrompo a musica e, se for o caso, que venha outra coisa, outro jazz, mas algo que nao faça isso comigo. Gera algo curioso, pois parece que, na mesma medida em que não consigo fazer nada com a musica, ela sempre parece ser capaz de fazer a mesma coisa comigo, e em parte o que ela faz é me retornar àquela condição de contato infantil e atônito.  E há uns dez anos, quando conheci esse texto de Aira, Cecil Taylor – uma espécie de biografia dos primeiros anos de Taylor, ou um breve ensaio sobre a construção de um nome de artista, ou uma narrativa sobre o novo na arte: vai saber, com Aira nunca se sabe -, isso também pegou, e continuou como algo lido, relido, aproveitado em margem de desperdício, quer dizer: não sei bem o que fazer com isso, mas me sinto impelido a fazer algo com isso e, na falta do saber o que fazer, me gasto em torno disso. Com o texto, quero o que sei que a musica me negou. Mas nem assim, por força de desejo, sou menos órfão, menos vão: continuo à toa e, como se vê, derivativo, e não sei o que está acontecendo, nem na música, nem no texto. O fato é que percebo que parece que vou envelhecendo só pra achar cada vez mais frágil saber. Vejo alunos, colegas, amigos, todos cheios de suas peremptoriedades. Mas, na hora de botar o meu saber na mesa, vou ter bem pouco a meu favor a não ser coisas como essa foto, linda, do Cecil Taylor, que imprimi e coloquei diante de mim como um talismã. Para que (a superstição, o pensamento mágico) me desse sorte nesse ensaio, talvez. Me servisse de escudo contra a desonra que seria sacanear uma coisa íntegra – como essa foto, aquele ensaio, ou a lembrança do dia em que vi Cecil Taylor na televisão – com nada mais que minha ansiedade de aparição na cultura, ou com a empáfia tola, impregnada de voz ardida e certeza, dessa urgência por relevância tão própria de nossa época.

CecilTaylor

 

Romance de Formação – 2

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on março 12, 2010

Em meus anos na loja de discos, dois clientes foram de fundamental importância em minha formação. O fizeram  inadvertidamente: estavam apenas fazendo o que fariam de qualquer jeito, mesmo se eu não estivesse lá: fui só uma casualidade, duvido que lembrem de mim.

Um deles, cujo nome esqueci, era um cara de uns trinta anos, rasta, só usava roupa afro, ganja, etc. Não sei exatamente o que ele fazia da vida, mas suponho que trabalhasse em algo na área cultural na região do Pelourinho: talvez eu tenha ouvido algo e esqueci que ouvi, e lembro hoje da impressão de ter ouvido. Era um sujeito abominável, arrogante e sempre disponível para humilhar e espezinhar; também era um adorador de si mesmo: falando de como ele era X, como ele fez Y, quando ele comprou Z. Suas aquisições na loja – sistemáticas, obsessivas, frequentes demais: era um maníaco, que obviamente comprava mais do que podia ouvir – consistiam sempre, e exclusivamente, de reggae, dub e ska.  Foi por causa desse cara que ouvi pela primeira vez Alton Ellis, King Tubby, The Upsetters. Coisas boas, o que talvez sirva como mais uma evidência de que se pode encontrar uma pérola mesmo no maior monte de bosta.

O outro, o nome também esqueci – mas lembro do sobrenome do apelido dele: era “Seco”, isso por um hábito que ele tinha. Esse era um cara de outra cepa: tinha mais de trinta, talvez morasse ainda com a mãe, e tinha um jeito duro, anguloso, vincado – o rosto lembrava um pouco a matriz de onde saiu o rosto de Pasolini. Estava sempre com uma roupa que parecia dizer que ele tinha deixado o paletó na cadeira, roupas sociais, sempre meio gastas. Esse era gerente de uma loja de móveis na região, lembro de passar na porta e ver ele trabalhando lá, atendendo uma pessoa, conversando com os outros caras da loja. Ele falava de outros assuntos: futebol, mulher, bebida, loteria. Ao contrário do Rasta, que parecia não ter problemas de grana, esse cara parecia duro. Parecia labutar, se privar  pra comprar os discos que ele comprava – que eram todos de jazz – só jazz. Esse cara tinha o hábito de dizer coisas como Ouça esse solo. Aí, velho. Scott LaFaro. Porra. SECO. Seco, porra. – com ênfase no seco, donde o apelido.

Tinha muita inveja desses caras. Mesmo achando o Rasta detestável, era um cara que sabia o que queria – que não sofria de minha dispersão, de minha inconsistência, eu que queria ouvir tudo. E com o outro eu ainda tinha uma certa empatia – ele tinha uma coisa melancólica e trágica, e eu sabia que tinha coisa a fazer nesse departamento, da melancolia e da tragédia; essa parte, aliás, deu bem certo pra mim. Vinte anos depois eu, que nunca fui nada pra esses caras, estou aqui me estapeando com um monte de coisas contraditórias que me fazem querer escrever sobre esse período, sobre essa experiência, sobre esses personagens.