ensaio

História abreviada dos livros que publiquei

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 13, 2011

Lancei três livros até agora.

O primeiro foi uma coletânea de textos do Rorty: três conferências, um texto autobiográfico, um texto de prognóstico e profecia: todos traduzidos com muita alegria por mim, em meu velho Mac Classic, e revisados em conversas com minha então orientadora. O livro contava ainda com uma introdução que eu e ela escrevemos juntos e com uma orelha generosa do Luiz Eduardo Soares. Nunca houve lançamento desse livro, nunca dei autógrafo, e sequer fui remunerado pelo trabalho; a edição se esgotou, e eu mesmo só tenho um exemplar. Lembro de ter ficado feliz quando apareceu, lembro de ter achado bonito e de ter sentido orgulho.

O segundo foi um livro que resultou de um prêmio que recebi de um banco interessado em promover a cultura: meu nome saiu na capa, junto com o de outros onze premiados, e o livro é esse balaio, sem outro norte a não ser o conferido pela premiação. O texto que saiu nesse livro me trouxe muita alegria: talvez pela primeira vez tenha me arriscado, tenha escrito algo sem saber direito o que escrevia. Era, é claro, apenas um ensaio: comentário, crítica, que é tudo que escrevi até agora, tudo que escrevo. Mas era também uma outra volta do negócio: acreditei  que o texto honrava minha relação com o Autor que comentava, e não me sentia perseguido pelo medo do erro.  Depois desse livro fiquei um tempo cheio de sonhos loucos de um novo começo, acreditei que estava descobrindo algo a respeito da escritura. Eu era e sou um filho de Barthes – bastardo e tardio e não-planejado, mas amado, no amor que vai de mim pra ele, sempre – e estava descobrindo aos trinta e poucos anos o que, enfim, se queria dizer com a distinção escrevência/ escritura. Mas, é claro, nada ocorreu, pois assim é a vida: as coisas só ocorrem às vezes, seria talvez o caso de compreender isso que chamamos de adventício a partir de outra matriz de valoração – pois vivemos todos mais ou menos escravos da razão prática e da lógica do resultado, do suposto matrimônio de trabalho e amor, mas o que fazer de amores de dissipação, de forças-de-vontade que se esgarçam sem muito ônus, sem muita preocupação com operações monumentais de fixação de marcos de passagem – o que fazer? Claro está que, se a pessoa pensa em coisas assim, apenas ocorreu algo da mesma ordem daquilo que nutriu a fatura do ensaio que propiciou essa forma peculiar de aprendizagem e alegria que nunca se fixou nem em conquista nem em método nem em transformação da vida nem em epifania – e, como tudo o mais, também se foi.

O terceiro foi um livro que escrevi sem saber que estava escrevendo, pois o que estava escrevendo eram uns artigos com um amigo pra uns eventos acadêmicos que foram aparecendo. Me impressiona observar o pouco que lembro hoje de como foram escritos esses textos: o que lembro é do período, e isso é como lembrar do conjunto, mas não do conteúdo, e só são coisas vagas, minha dureza eterna, o apartamento, os livros, a mesa, a cama, os cigarros, uma lâmpada que eu adorava, as estantes que eu fiz. Mas lembro, claro, da amizade: lembro da presença dessa pessoa, meu amigo, o co-Autor, em minha vida, como uma pontuação: a primeira vez que nos encontramos, conversa X, conversa Y, conversa Z, visitas, saídas, risadas, conselhos; sua insistência para que eu parasse de fumar e começasse a nadar, a diferença na ordenação e no suposto projeto de nossas vidas, o gosto musical lastimável que até hoje o caracteriza. Uma vez viajamos os dois para a Europa e não nos encontramos em Praga por dias de diferença – e, depois, rimos ao pensar no encontro fortuito, ele de terno e com toda pompa e circunstância, eu de mochila e o antípoda da pompa. Outra vez, na véspera de minha defesa de doutorado, nos encontramos sem marcar nada na hora do almoço no restaurante japonês que, seis anos antes, eu tinha apresentado a ele. E outra vez liguei pra ele de um orelhão porque me sentia totalmente solitário, e achava que ninguém mais poderia ter algum interesse em me ouvir a não ser, talvez, ele – o que nos diz que o melodrama, como Puig bem sabia (e Barthes também), tem sua zona de pertinência facilmente verificável na carne de quem o vive, onde habita como punctum.

Esses são os livros que há, mas há também os que virão.

Um próximo contará como, ao longo de sete anos, persegui um projeto de escrever uma biografia de um Autor que admiro e naufraguei seguidamente. O livro será a contrafação do insucesso que constitui sua matéria; vou gostar muito de escrevê-lo mas será, é claro, pouco lido e logo esquecido.

Um outro será uma investida de reescrita crítica de alguns textos que admiro mas que julgo problemáticos e enfadonhos, são como uma refeição boa que melhoraria com o apropriado condimento. Assim, em um dos contos veremos trechos do Diário de Moscou, de Benjamin, mas com um pouco de sexo, por favor, pois tanto tesão pela Asja não sobreviveria sem alguma puta, sem alguma masturbação, sem subir pelas paredes em ardor. Em outro, pego dois de Os Três Mosqueteiros e os coloco a caminhar por uma alameda a discutir algumas questões menos monárquicas, e mais suculentas: Athos descobre uma forma de proto-Marxismo, e começa a temperar suas análises de conjuntura com essa mirada oblíqua, sugerindo estratégia a partir de pressupostos Revolucionários. Um terceiro e último conto – pois o livro será também, evidentemente, uma homenagem a Flaubert, dispensável para ele mas necessária para mim – será a história de um arqueólogo jovem, em início de carreira, escavando em Túnis e descobrindo ruínas com inscrições, textos antigos que contam uma história alternativa à que é contada em Salammbô: o arqueólogo ignora Flaubert e, enquanto ele pensa ver a escrita da História nós, que lemos a história dele, sabemos que já não sabemos mais qual é o fim da Ficção. O livro será um exemplo de crítica como prática revisionista da literatura – e será demolido pelos neoconservadores da crítica, esses que ainda estão de fraldas agora mas estarão de dedo em riste no futuro próximo, prontos a antagonizar tudo que seja um mundo que não seja o seu – mas se pagará plenamente pelas gargalhadas que darei ao escrevê-lo, e será lembrado, de vez em quando, por meus amigos.

Há um outro, por fim, um livro meio acadêmico, que coleta todas as coisas lindas que o Kelvin me sugeriu ao longo dos anos. Tio Toni, porque você não escreve aquela história do grego em Nova York? ou E aquele texto que você disse que ia fazer comparando o minimalismo de Carver ao de Lydia Davis, hein? Cadê? Tinha até título, o título ficou bacana. ou Você lembra que me disse uma vez que tinha um ensaio sobre o Diário do ano da peste, de Defoe? Que fim levou esse texto?  Esse livro escreverei sem esforço quase nenhum, o que é uma mentira, e será um bom começo portanto para um livro que só tratará de fatos: nele, vou incluir aquele trecho do meu diário no qual conto a respeito do dia em que atravessamos a Avenida Paulista, eu e o Kelvin, de ponta a ponta, o passeio acompanhado de uma inigualável conversa fiada na qual falamos inclusive de Saer, e que escrevi como se fosse uma versão 2.0 de Glosa – pardacenta, turbulenta, edulcorada, mas minha, enfim meu manifesto de libertação do jugo da prosa de Saer. Sei muito pouco sobre esse livro além disso, mas sempre imagino que vou estar feliz no dia do lançamento.


I am Assange

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on dezembro 9, 2010

Muitos vão duvidar, assim como eu duvido agora de mim mesmo, mas vou mencionar Saramago laudatoriamente, utilizá-lo e, com isso, enviar meus leitores à leitura dele. O que, convenhamos, não é de todo mau.

O caso está em A Jangada de Pedra, que foi o primeiro livro dele que li, em um verão bem distante, quando ainda dividia apartamento com Dick Noir, e que li por recomendação dele. O mote do livro, sabemos, é que a península ibérica se descola do resto do continente – fica aí, uma massa de terra, o que se faz com ela, aterrorizando o Atlântico, solta. Há um belo momento, quando a ficha cai, os Europeus se apercebem do que está em jogo com a península à deriva e, como sempre, nas engajadas universidades parisienses começam a dizer Eu também sou Ibérico. O que, entendi, queria dizer Eu também sou Outro, ou Sem o Outro não sou eu – algo dessa ordem. É lindo, é uma apoteose, um florescimento. Se esgarça, obviamente, o livro tem outros destinos, o Autor deseja, nesse caso creio que desgraçadamente, muito mais. Mas é uma onda, é emocionante, e também diz algo, pois o incidente está repleto daquilo que faz com que ainda hoje falemos “Maio de 68” – há aí coisas ditas, coisas feitas, e fermento imaginário e conversacional fazendo o evento crescer e se sedimentar como um fato que sempre ultrapassa o slogan que, supostamente, o define.

Para comentar e situar o caso específico do Wikileaks e da prisão de Assange, não poderia fazer nada melhor que o Avelar já fez aqui – como sempre com a bala na agulha, ele organiza o incidente em uma narrativa, faz do bruhahá um fio na trama do presente, e com isso nos ajuda a produzir sentido e encontrar um lugar na narrativa também. Um lugar que pode ser esse, de dizer Eu sou Assange, Eu  também sou Assange. Isso, em meu caso, quer dizer que não tive a vida aventuresca e heróica que ele teve e tem, e que não estou na berlinda como ele está – mas que há algo de empatia entre o que eu julgo justo e bonito fazer e o que ele passa a ser quando, a respeito dele, podemos dizer coisas assim. E Herói é pra isso mesmo.

O fim do livro de Maurício Raposo

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 7, 2010

Como em quase qualquer coisa, há uma certa ambiguidade na ocasião do fim da leitura. Alguns livros se permitem o abandono, e com isso o fim da leitura parece uma coisa conquistada, um objeto adicionado a seus pertences. Outros repudiam qualquer sensação de conquista: uma vez finda a leitura, o que continua com você é a perda. Você perdeu, o livro não está mais com você, aquela companhia se foi, e você vai continuar sem ela – e com a sensação da perda.

Assim, você se vê numa noite de quinta-feira, perdido em sua própria casa, pois seu livro terminou: você estava lendo sobre Henry James, algo que tem uma aura toda particular para você: conhecer, ler, usar Henry James é um indicativo de que você se afastou muito da pessoa que era quando saiu de casa, pois você tem uma idéia meio demodê de formação que está indissociavelmente ligada a Henry James e outros luxos afins. Então você passou os últimos dias, uma semana difícil, uma semana hostil, enfiando essa leitura de uma “biografia romanceada” de James nos hiatos entre as tarefas. A denominação é cretina: o livro é ficção: é bonito e bom, e é ficção. Você pensa E daí que flerte com supostos acontecimentos documentados? Quem inventa e não faz isso que atire a primeira pedra. Nossa épica, mesmo que se prove fudida e gasta, é essa: uma invenção vampira, uma criação dependente. Não é secundária, não é necessariamente derivativa – mas por mais que se esforce, e tem se esforçado, não abandona sua amante, que é também sua nêmesis, suas vias de fato.

Está claro que, se você está pensando essas coisas por volta de uma e meia da manhã, sua noite está em alguma medida comprometida e, como um estranho em sua própria casa, você se demora diante da proporcionada desordem das estantes, quer saber o que vem a seguir, quem ocupará o lugar vago, quem virá resolver alguma coisa agora que você terminou de ler The Master, agora que você não sabe mais o que ler, ainda. Você se dirige ao setor Henry James: será a hora de reler algum desses contos? Reler What Maisie knew? Coisas de crítica e comentário: Os prefácios, com o prefácio aos prefácios escrito pelo Marcelo Pen? O capítulo de Eakin sobre os textos biográficos de James? O primeiro volume da biografia de Edel? Saer escreveu um bom prefácio para “The lesson of the Master” – onde está isso? É titubeio, e passa tempo, mas é tudo vão, você sabe: essa noite, essa solidão, é isso que você vai ter.

Então você encontra, enfiado na estante acima dos livros, entre alguns pocket books largados e amarelíssimos, quase impossíveis de se ler agora, e nem são tão velhos assim – The turn of the screw, The Aspern Papers, um Conrad, todos comprados em um balaio que tinha perto do restaurante da UFMG – você encontra uma moldurinha, um porta-retratos barato, com uma foto dos irmãos James, os dois já bem coroas, no jardim da casa de Henry em Rye. Essa foto, que você carrega há mais dez anos, foi parar na moldura como um presente de Natal e de despedida para um amigo, um presente que nunca foi enviado: a legenda, que dizia originalmente William and Henry James, Lamb House, 1900, está riscada e embaixo, escrito à mão, está agora Antonio Marcos Pereira e Maurício Raposo, Belo Horizonte, 2001. A consequência óbvia de encontrar com um objeto desses em tais condições é ponderar vagamente sobre amizade, perda, erro – e, também, claro, sobre a força pálida de alegrias passadas, o prazer de colocar as mãos no bolso do agasalho em um dia frio, o vazio todo particular da espera, a casualidade apropriada da mão no ombro do amigo, do irmão, do cúmplice eletivo, seu abraço.