I am Assange
Muitos vão duvidar, assim como eu duvido agora de mim mesmo, mas vou mencionar Saramago laudatoriamente, utilizá-lo e, com isso, enviar meus leitores à leitura dele. O que, convenhamos, não é de todo mau.
O caso está em A Jangada de Pedra, que foi o primeiro livro dele que li, em um verão bem distante, quando ainda dividia apartamento com Dick Noir, e que li por recomendação dele. O mote do livro, sabemos, é que a península ibérica se descola do resto do continente – fica aí, uma massa de terra, o que se faz com ela, aterrorizando o Atlântico, solta. Há um belo momento, quando a ficha cai, os Europeus se apercebem do que está em jogo com a península à deriva e, como sempre, nas engajadas universidades parisienses começam a dizer Eu também sou Ibérico. O que, entendi, queria dizer Eu também sou Outro, ou Sem o Outro não sou eu – algo dessa ordem. É lindo, é uma apoteose, um florescimento. Se esgarça, obviamente, o livro tem outros destinos, o Autor deseja, nesse caso creio que desgraçadamente, muito mais. Mas é uma onda, é emocionante, e também diz algo, pois o incidente está repleto daquilo que faz com que ainda hoje falemos “Maio de 68” – há aí coisas ditas, coisas feitas, e fermento imaginário e conversacional fazendo o evento crescer e se sedimentar como um fato que sempre ultrapassa o slogan que, supostamente, o define.
Para comentar e situar o caso específico do Wikileaks e da prisão de Assange, não poderia fazer nada melhor que o Avelar já fez aqui – como sempre com a bala na agulha, ele organiza o incidente em uma narrativa, faz do bruhahá um fio na trama do presente, e com isso nos ajuda a produzir sentido e encontrar um lugar na narrativa também. Um lugar que pode ser esse, de dizer Eu sou Assange, Eu também sou Assange. Isso, em meu caso, quer dizer que não tive a vida aventuresca e heróica que ele teve e tem, e que não estou na berlinda como ele está – mas que há algo de empatia entre o que eu julgo justo e bonito fazer e o que ele passa a ser quando, a respeito dele, podemos dizer coisas assim. E Herói é pra isso mesmo.
O fim do livro de Maurício Raposo
Como em quase qualquer coisa, há uma certa ambiguidade na ocasião do fim da leitura. Alguns livros se permitem o abandono, e com isso o fim da leitura parece uma coisa conquistada, um objeto adicionado a seus pertences. Outros repudiam qualquer sensação de conquista: uma vez finda a leitura, o que continua com você é a perda. Você perdeu, o livro não está mais com você, aquela companhia se foi, e você vai continuar sem ela – e com a sensação da perda.
Assim, você se vê numa noite de quinta-feira, perdido em sua própria casa, pois seu livro terminou: você estava lendo sobre Henry James, algo que tem uma aura toda particular para você: conhecer, ler, usar Henry James é um indicativo de que você se afastou muito da pessoa que era quando saiu de casa, pois você tem uma idéia meio demodê de formação que está indissociavelmente ligada a Henry James e outros luxos afins. Então você passou os últimos dias, uma semana difícil, uma semana hostil, enfiando essa leitura de uma “biografia romanceada” de James nos hiatos entre as tarefas. A denominação é cretina: o livro é ficção: é bonito e bom, e é ficção. Você pensa E daí que flerte com supostos acontecimentos documentados? Quem inventa e não faz isso que atire a primeira pedra. Nossa épica, mesmo que se prove fudida e gasta, é essa: uma invenção vampira, uma criação dependente. Não é secundária, não é necessariamente derivativa – mas por mais que se esforce, e tem se esforçado, não abandona sua amante, que é também sua nêmesis, suas vias de fato.
Está claro que, se você está pensando essas coisas por volta de uma e meia da manhã, sua noite está em alguma medida comprometida e, como um estranho em sua própria casa, você se demora diante da proporcionada desordem das estantes, quer saber o que vem a seguir, quem ocupará o lugar vago, quem virá resolver alguma coisa agora que você terminou de ler The Master, agora que você não sabe mais o que ler, ainda. Você se dirige ao setor Henry James: será a hora de reler algum desses contos? Reler What Maisie knew? Coisas de crítica e comentário: Os prefácios, com o prefácio aos prefácios escrito pelo Marcelo Pen? O capítulo de Eakin sobre os textos biográficos de James? O primeiro volume da biografia de Edel? Saer escreveu um bom prefácio para “The lesson of the Master” – onde está isso? É titubeio, e passa tempo, mas é tudo vão, você sabe: essa noite, essa solidão, é isso que você vai ter.
Então você encontra, enfiado na estante acima dos livros, entre alguns pocket books largados e amarelíssimos, quase impossíveis de se ler agora, e nem são tão velhos assim – The turn of the screw, The Aspern Papers, um Conrad, todos comprados em um balaio que tinha perto do restaurante da UFMG – você encontra uma moldurinha, um porta-retratos barato, com uma foto dos irmãos James, os dois já bem coroas, no jardim da casa de Henry em Rye. Essa foto, que você carrega há mais dez anos, foi parar na moldura como um presente de Natal e de despedida para um amigo, um presente que nunca foi enviado: a legenda, que dizia originalmente William and Henry James, Lamb House, 1900, está riscada e embaixo, escrito à mão, está agora Antonio Marcos Pereira e Maurício Raposo, Belo Horizonte, 2001. A consequência óbvia de encontrar com um objeto desses em tais condições é ponderar vagamente sobre amizade, perda, erro – e, também, claro, sobre a força pálida de alegrias passadas, o prazer de colocar as mãos no bolso do agasalho em um dia frio, o vazio todo particular da espera, a casualidade apropriada da mão no ombro do amigo, do irmão, do cúmplice eletivo, seu abraço.
10 comments