ensaio

Um poema

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on novembro 4, 2015

Gente na ponte

Wislawa Szymborska

Estranho planeta e nele essa gente estranha.
Sujeita ao tempo, não o reconhece.
Tem seu jeito de expressar seu desagrado.
Faz pequenas pinturas assim como esta:

hiroshige
Nada especial à primeira vista.
Vê-se a água.
Vê-se uma das suas margens.
Vê-se uma canoa forçando seu curso contra a corrente.
Vê-se uma ponte sobre a água e vê-se gente na ponte.
Essa gente claramente apressa o passo,
porque de uma nuvem escura
começou a cair uma bruta chuva.

A questão é que ali nada mais acontece.
A nuvem não muda a cor nem a forma.
A chuva nem aumenta nem cessa.
A canoa navega sem se mover.
A gente na ponte corre
no mesmo lugar de ainda há pouco.

É difícil passar sem um comentário:
Esse não é de modo algum um quadro inocente.
Aqui o tempo foi suspenso.
Deixou-se de levar em conta suas leis.

Foi privado da influência no curso dos eventos.
Foi desrespeitado e insultado.

Por causa de um rebelde
um tal Hiroshige Utagawa
(um ser que por sinal,
como sói acontecer, faz muito que se foi),
o tempo tropeçou e caiu.

Talvez seja só uma simples brincadeira,
uma travessura na escala de um par de galáxias,
em todo caso porém
acrescentemos o seguinte:

Tem sido de bom-tom há gerações
ter a obra em alta conta,
deslumbrar-se e comover-se com ela.

Tem aqueles para quem nem isso basta.
Ouvem até o barulho da chuva,
sentem as gotas frias no pescoço e nas costas,
olham a ponte e as pessoas,
como se lá também se vissem,
na mesma corrida que nunca termina
na estrada sem fim, eternamente à frente
e acreditam, na sua desfaçatez,
que de fato é assim.

Tradução de Regina Przybycien 

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Um problema

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on setembro 17, 2014

Andei pensando no seguinte problema:

Quando estou considerando narrativas habituais, tenho um pacote de categorias que aplico para sua descrição e análise. Um exemplo, aqui. A narrativa, e as categorias que utilizamos para lidar com elas, são criaturas do hábito, tradicionais, conhecidas.

Quando estou considerando narrativas excepcionais, extraordinárias: o que é que eu faço?

Eu tenho um problema.

Vejam aqui, por exemplo, o que George Saunders faz para comentar Daniil Kharms: vejam o comentarista se atribulando. A certa altura, ele diz: No processo de martelar um prego, Kharms faz evaporar seu próprio martelo.

Isso, aqui, está como crítica, e é certo que esteja: é comentário de literatura, e além do mais feito num jornal, para informar mas também para vender livro que acabou de ser lançado.

Mas o negócio também tem uma outra vida, que não é a vida vicária que via de regra atribuímos à crítica. A doideira de Kharms provoca um negócio na doideira de Saunders: rua de mão única, um vem ao encontro do outro, rola um aperto de mãos aí.

kharms

 

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 13, 2013

Hoje, adoentado e melancólico, decidiu ler um trecho do Entrevistas com Brodsky.

Como descobriu esse livro? Não se lembra, mas lembra que chegou no Brodsky pelo entusiasmo de uma resenha do Diogo Mainardi. E nunca mais deixou Brodsky, ou vice-versa: todos os semestres submete os alunos a uma sessão de leitura da Canção de Boas-vindas; uma vez viu Il Miglior Fabbro lendo esse poema em uma oficina de poesia que frequentou; outra vez comentou algo com F, ambos já meio bêbados, e foram os dois trocando estrofes favoritas até que o poema se dissolvesse em riso metafísico e na poeira cósmica anunciada, que nos tragará e continuará. E hoje, sabe-se lá por qual rota, chegou no livro que, lembra, retirou de uma prateleira infeliz no Elizarte, um sebo do Rio que frequenta fielmente há mais de vinte anos, desde a primeira vez que foi ao Rio, moleque ainda. Lá estava esse livro de entrevistas, meio caído, meio mofado, muito barato.

O entrevistador, Volkov, era também um exilado, e tava numas de fazer entrevistas com exilados: Balanchine, Shostakovich, etc. Ia lá no apartamento do Brodsky, no Brooklyn, ligava um gravador, e os dois engatavam a conversa. Brodsky obviamente estava a fim de falar, e falou: conta tudo, é uma espécie de autobiografia oral, com muito toma lá dá cá e alguma correção recíproca; não parecem ser amigos, há farpas paca, mas a coisa continua. Impressiona como Brodsky tava a fim: você tem hoje a mesma idade que ele tinha quando deu essas entrevistas, pouco tempo depois ele faria uma cirurgia do coração, o seu também anda combalido. Impressiona como ele tava a fim, e você se pergunta se é a insinuação de mortalidade que o motiva, se ele já tinha escrito Canção de Boas-Vindas, se ele já tinha escrito Menos que um. 

O livro estava muito mofado, se sentia o mofo imortal e vencedor brilhando cada vez mais a cada virada de página, rumando em ondas místicas como um Minuano do Saara em direção ao nariz, uma fala cuja única tradução é a alergia.

Você coloca o livro na janela para tomar um pouco de sol: abre o livro, espalha as paginas e a sobrecapa. Volta, depois, e vira o livro, muda tudo de posição: o sol se vai e você ainda deixa o livro no vento, na janela, apoiado na tela.  A certa altura ficou virada pra você uma foto do Brodsky, careca e pançudinho, quarenta anos, muito bonito e formidável, uma vida e tanto, puta poeta, morava no Brooklyn, de vez em quando se acostava com a Sontag. Quantas calças será que ele tem? Como é seu guarda-roupa nessa época? Como ele fazia para arejar o próprio mofo?

brodsky