ensaio

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on abril 10, 2014

Picnic Paquetá fev- 2010 (61)

 

 

Eis que se ergue, podemos vê-lo na curva do tronco da árvore: estava a olhar para o outro lado, olhar adiante da costa, altaneiro, o cenho febril e intranquilo dos que contém multidões: é o Xamã-Mor, o Neo-Babalorixá, o Pós-Buda, o nosso, o autóctone e autêntico, a rezar. Urna grega nos trópicos, cercanias da árvore, diante do mar, reverberação dos vais-e-vens todos do universo quântico vibratório da murta.

Eis que o Neófito se aproxima, sem titubeios, pois a vontade é muita e a juventude é forte e rotunda e abrupta: busca a benção, será quiçá merecedor da benesse da benta saliva que é aspergida em fractal paralela à voz do mestre, que canta a voz de um antanho futuro e místico, relativo e absoluto em si mesmo a partir sempre de decreto próprio de si e dos seus.

Ainda que eu ande pelo vale da Sombra da Árvore do Picnic de Paquetá não temerei mal algum, pois sua eufemia e seu cajado verbal estão comigo, Mestre, Xamã maior, Pós-Babalorixá, ânus austral máximo de pura sabedoria incandescente, fonte do grande peido místico celebrado na Quinta da Boa Vista como o Novo Advento, a Última Vinda. Em Paquetá, onde o Claudio Cavalcanti celebrou um alterego que celebrava a curva boa da fértil melancia, onde a semente de melancia foi lançada da barca, e além, em um mesmo plano de consistência, na esquina do desvio, alors! Ou, como já disse um dileto discípulo (há quem o chame O Herdeiro), Na mola mestra das pregas do cu do mestre se oculta O Segredo. 

O Neófito se aproxima, o Mestre completa a curvatura do círculo ao redor que circunda a árvore, há um colóquio, Mestre, ao que o Mestre, imediato, retruca Não vai falar com ela? E o Neófito, qua neófito, inquiridor e estupidificado, mas ao mesmo tempo pronto para a prenhe novidade do Outro maior sempre à espreita, nada responde, olha e espera, ao que o Mestre, sabedor de tudo que é dos Novos e da Novidade, suplementa, cândido e manso, Ela, A Árvore. E o Neófito diz Como vai, prazer.

 

Don Draper, John Cheever

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on outubro 29, 2010

A extensão em que se pode ter empatia com Don Draper é enorme: o homem é uma fantasia de sucesso completa, habita um momento histórico e um lugar invejáveis, e celebra um exercício radical do projeto do self-made man: é carismático, astuto e tranquilo, uma fortaleza que se fez com nada exceto habilidade, engenho e arte. Mas, à medida que a narrativa avança, uma tintura começa a aparecer e se espalhar – e você não se surpreende, mas o fato é que é uma tragédia. Há momentos de leveza, mas são eventuais, parênteses. O destino do herói, uma vez que é destino, não admite redescrição, e a contingência não é capaz de nada a não ser de uma folga cômica, um alívio que permite a projeção, em uma outra volta do parafuso, da narrativa para seu final.

Ou não? Observe, por exemplo, o momento em que Draper, na Califórnia, pode se redescrever mais uma vez, sumir, desaparecer: toma um banho de mar, sem camisa, com uma calça cáqui arregaçada, um quarentão em uma praia solitária na costa oeste nos anos sessenta. O que se pensa em um momento assim? O que se deseja? Ou, ainda, no episódio em que ele aparece nadando na piscina, ruas de Manhattan fervilhando no início do verão, e ele escrevendo em seu diário, de novo com uma calça cáqui, os pés descalços: o que é isso? Reforma moral, incipit vita nova?

Você lê os diários de Cheever, mais ou menos dessa época, início dos anos sessenta, ele já com quase cinquenta anos dizendo coisas como A estranheza do tempo, a estranheza da personalidade. Às voltas consigo mesmo, perplexo com seu próprio espectro de ambiguidades e envolvido em um trabalho que, em certa medida, depende do auto-exame para ter sucesso, Cheever parece o tempo todo buscar para si o estado em que, sem nome e nu mais uma vez, ninguém sabe quem ou o que ele é, e ele pode ser qualquer coisa, e acreditar por um momento que a satisfação desse novo desejo de ser será, dessa vez, enfim, algo sem custo, sem dor, sem falência. Você escreve em seu diário sobre isso, acorda cedo para nadar, e se esgota pensando em coisas dessa família: razões, projetos, impotências, importâncias. E isso, embora pareça a posteriori apenas mais uma encarnação da ingenuidade, ou um exercício peculiar de ócio e lassidão, é também a manifestação de uma urgência que talvez seja inevitável, uma consciência da falência final que não se deixa asfixiar pelas mil e umas forças do Não, do Você não é isso, do Você sempre vai ser assim. E então você nada um pouco mais e lembra de Cheever se perguntando, em uma página de 1962,

O que é afinal que eu quero: um quarto mobiliado, um umbral de porta, ou uma rua, o vento soprando?  Depender de coisas e pessoas, estar sujeito às circunstâncias, desejar avidamente evitar a miséria particular da independência. Conhecer as diferenças do que se sente nesse momento da vida, nadar na praia e subitamente perceber que tudo passou de dor para prazer, acreditar que ainda há trabalho a fazer, algo a fazer.

Dia de Beckett

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 28, 2010

Um dia como esse hoje, tarde magnífica, fui levar a cachorra pra passear e dei graças a deus de não ser hikikomori.

Fui comprar o jornal, não tinha Estadão, mas tinha O Globo. A alegria ocorreu, mas como sói ocorrer, durou pouco: o Prosa e Verso cantava loas à pseudo-majestade Ferreira Gullar, poeta laureado, esteta ressentido, fruidor de arte ortodoxo, ex-comunista, anti-petista, abusivo, monótono, chato – mas celebrado que só. Pouco antes de sair de Belo Horizonte, lembro de assistir a uma palestra dele: foi ovacionado às custas da rudeza arrogante com que tratou Duchamp e arte conceitual – isso foi perto do lamentável incidente dele contra a Laura Vinci. Foi ovacionado: devia estar empoderado, o velhinho, deve ter saído do salão de conferências do Palácio das Artes se sentindo centroavante na vida, se sentindo muito mais e melhor que o pífio reaça que estava sendo. Triste destino o de envelhecer acreditando-se um exército de um homem só – triste envelhecer numa metáfora bélica. Bom, que seja: triste para mim. Vai saber o que o outro celebra em si.

Na praia, as barracas no chão, uma imagem que nunca tinha visto antes, o dia magnífico, lindo mesmo, a enseadinha mansa, umas crianças, um casal de gringos. Uma senhora cheia e sorridente, parecendo Aunt Jemima, se aproveitou do vazio e levou um isopor pra vender cerveja. Quando tinha treze, catorze anos vinha aqui de ônibus, passava o domingo na praia, seminu e, que me conste, sem dinheiro nenhum.

Minha cachorra, tão adorável, o fim de tarde e, no mar, a linha do horizonte mais escura, tudo azul, nenhuma nuvem. Como não lembrar de Beckett num dia assim? Pois consta que um dia Beckett estava caminhando com Paul Léon, estão nos Champs Elysées, digamos que estão indo tomar uma, e a tarde está exuberante – como essa de hoje. Léon puxa conversa, dizendo Dia lindo, hein, Sam? E Beckett olha ao redor, como se até então estivesse distraído da circunstância, e confirma o valor de verdade da afirmação de Léon dizendo É mesmo, lindo mesmo. E então Léon – em um movimento no qual me reconheço, com o qual me identifico, que poderia ter sido meu – se empolga e diz Pois é – num dia assim você se sente feliz por estar vivo! E Beckett – em um movimento admirável, no qual reconheço a pessoa que eu desejaria ser mas nunca serei, que jeito – responde Ah, Paul, aí já não sei – eu não iria tão longe. E os dois se entreolham – e riem, são amigos, em alguns minutos beberão uma cerveja.


Opoyaz, ganha-pão

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on junho 2, 2010

Eis que Kelvin aparece com mais dois posts muito bons, aqui e aqui. Ele está falando de coisas em meu terreno – que é também, em certa medida, o dele. Em que pesem todas as diferenças geracionais e estilísticas, ler, falar e escrever sobre Saer, Piglia, e mesmo Aira é parte do que põe o pão na mesa pra nós dois – nós dois participamos dessa fortuna.

Falei pra um amigo outro dia, Esses blogs são minha Opoyaz. Claro: uma Opoyaz ralé, pós-pós-tudo, cheia de Pro-Ams, sem tanta solidificação quanto sua matriz e inspiradora involuntária, sem manifesto, provavelmente mais apta a acolher diferença e vacilação que a versão anterior, privada de gênios. Mas é um coletivo que mantém uma rotina de conversações e barganhas que nutre as produções de cada um; com sua particularidade faz uma coisa que, independente de qualquer telos desejado ou projetado, é vida literária no século XXI.

Por exemplo: há alguns dias, o assim-chamado Andreis Passarinho publicou em seu blog uma análise sinóptica do trabalho de Bernardo Carvalho. É um post de umas mil palavras, mais de seis mil caracteres: é bem mais do que tenho quando escrevo pro jornal. Salvo engano, aí está ele a usar seu blog para fazer um negócio que, na falta de melhor palavra, é crítica literária. Observem que o crítico anota a obra, se posiciona, exibe o comentário na esfera pública – se isso ainda não é crítica, não sei o que é, e vou me poupar de brandir Terry Eagleton por hora.

Postei em uma comunidade do Orkut que modero um comentário sobre o texto do Andreis; disse:

Eu concordo e discordo ao mesmo tempo com quase tudo! O básico é que os aspectos que o crítico usa para malhar são para mim sinal de excelência: acho que BC se esforçou bastante para produzir dois grandes livros – o Nove Noites e o Sol se põe em São Paulo – e agora está iniciando um outro negócio, que vamos ver no que vai dar.

Eu teria, terei muito mais a falar sobre BC – como vcs ja sabem. Já escrevi sobre o cara, e não tenho problema em dizer que o “estudo”, que o que ele faz é incorporado por mim a parte de meu trabalho tb. Mas, antes de meter minha colher, queria ver o que vcs acham do post aí. O que vcs acham?

E, em questão de horas, li que o Diego Giesel pensava que

AM, quando o Andreis falou sobre o Vida modo de usar eu pensei a mesma coisa. Concordo e discordo.

E que o Refrator de Curvelo, por sua vez, achava que

Não. Eu tendo a concordar. Estou mesmo incomodado com as coisas que o Andreis escreveu. E não se enganem. Defendi, com relativo sucesso, nosso Bernardo Carvalho em algumas situações e tenho o sujeito como um baita artesão de letras que, inclusive, me causa inveja. É bom ter por aí alguém que sabe o que está fazendo. Mas falta algo.

Não gosto, contudo, de pensar que a responsabilidade do que falta é do Bernardo Carvalho. Esta é uma perspectiva crítica desmobilizadora, e muito cínica. Falta que os sujeitos que tenha coragem para errar consigam fazer isso com competência, e não com a cara cheia de pó ou coisa parecida. Que BC é um engenheiro, isso é. Que faz transplantes narrativos (coisa que o Andrei não fala, mas me salta aos olhos; é fácil encontrar Perec em “Teatro”; Bernhard em “As iniciais”; Chatwin em “Nove noites” – e encontrar eu digo encontrar, mesmo, como se fosse para tomar um chazinho ou encher a cara), também está lá. E faz bem, com maestria. O que está faltando é o resto que Bernardo Carvalho não é. Inclusive, ele não é outras pessoas. E isso, hoje, não temos. Outras pessoas.

C´est ça.

E já o Leandro disse

Eu também concordo e discordo ao mesmo tempo com quase tudo. Nove Noites e O Filho da Mãe são dois grandes livros. AM, acho que o O Sol se põe… tem um grande defeito, de inserir uma personagem que não tem nenhuma utilidade (a irmã do protagonista no Japão). O defeito que ele vê, de alguém que trabalha sempre com as mesmas peças, pra mim é uma grande qualidade. Algo failbettter.

Há outras contribuições, mas vou abdicar de arrolar todas aqui. Agora me diga você a que vem interditar essa conversa do status de crítica. Vá lá que não é Teoria, não se trata disso  mas há, aqui, especulação e empenho da atenção no tratamento da “matéria literária”. Claro: o estado é de embrião, e precisa de mais tempo e condições para acontecer, e só eventualmente se transforma, e sai dessa coisa mais dispersa e ligeira para virar outra coisa, coagulada em um comentário mais recheado de argumentos e com a devida arrecadação de evidências e desfile de justificativas. Observe que nesses comentarinhos, que seus autores escreveram provavelmente entre uma obrigação e outra, no meio de um dia ordinário, ou se refastelando numa procastinação comezinha e culpadinha, como é por exemplo do meu feitio, há, principalmente, leitura, e conversação sobre a leitura – e sem esses dois ingredientes, nosso ganha-pão cai por terra fácil.

Esse ganha-pão é difícil, mas também bom. Pode ser executado com retidão, e pode ser feito de maneira escrotinha. Pode se beneficiar muito de uma certa obnubilação – que, se vampirizada com destreza, garantirá ao picareta um modus vivendi relativamente folgado e privilegiado, com pouca chance de desmascaramento público – e é sempre bom lembrar que a casa também faz às vezes de asilo de dementes, de inviáveis alhures que aqui encontram abrigo. Esse ganha-pão pode, enfim, trazer uma alegria no processo, um esquecimento eventual do produto que se liga a recuperações infantis, a curiosidades atiçadas ad eternum, e distribui epifanias no ordinário; mas pode ser uma faina frustrante e amarga também, uma litania do ganho pouco, do me falta, etc.  É ainda possível que, como diz Bloom, esse negócio esteja agora em sua condição crepuscular. Mas, claro, ainda não: não viveremos pra ver isso.

Opoyaz on the beach

Bovarismo, 2666

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 24, 2010

Como é do conhecimento de vocês, a questão do Bovarismo me interessa; creio que é uma espécie de consequencia fatal da leitura de ficção, um efeito colateral incontornável e, talvez, um elemento necessário na produção do desejo de ficção – seja de sua leitura, seja de sua produção. Há anos faço anotações sobre isso, partindo de uma observação inicial de Piglia, que em um texto conhecido alude ao célebre abraço no cavalo de Nietzsche em Turim como uma instância de bovarismo. Venho compilando eventos, incidentes, observações e citações ligadas ao tema – venho ensaiando escrever um ensaio que redescreva e recupere o termo, colocando-o, na circulação conceitual sobre ficção contemporânea, como parceiro de noções como “pastiche” e “auto-ficção”. A coisa, afinal, é simples, e parece útil justamente por isso: lemos e, tendo lido, balizamos nosso contato com a suposta realidade de maneira diferente – eventualmente, nos esforçamos para produzir conexões entre o lido e o feito; eventualmente testemunhamos essas conexões sem que nossa agência tenha sido necessária para produzi-las.

Há o clichê Uma imagem vale mais do que mil palavras etc. Obviamente, considerando minha amizade com as palavras, me disponho a discordar, a César o que é de César, uma imagem diz umas coisas, um texto diz outras, um beijo não anula o outro, e a camaradagem continua. Eis, portanto, a inacreditável imagem:

Na praia com Sylvia Plath

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 21, 2010

1. Sloterdjik/ Zizek. Um dia fui numa conferência do Zizek. Uma anomalia: um domingo ensolarado, um centro de cultura alemã, Zizek com duas rodelas imensas de suor debaixo do sovaco de uma camisa com um desenho do Mickey. Todavia, como às vezes acontece, é na morada do bizarro que encontramos a companhia amiga que mais nos é cara. Pois a meio caminho de sua exuberante e careta superinterpretação de They Live, de John Carpenter, Zizek vai e menciona mais ou menos o seguinte:

O Ocidente projeta uma imagem de si mesmo como sendo fundado na necessidade de compreender o Outro. Ora, talvez a proposta de Sloterdjik seja bem mais próxima do que é o caso. Sloterdjik diz que progresso social é criar mais e melhores condições para ignorar o Outro. Compreender dá muito trabalho, e mesmo a performance da compreensão, que ocupa tantas vezes o lugar da própria coisa, dá muito trabalho. Não quero compreender meu vizinho: quero poder ignorá-lo, e ser ignorado por ele.

Há algo duro e cínico aí, e a extensão indiscriminada desse ethos me envergonharia – claro, sou um velho nerd pós-humanista, mal e porcamente informado sobre o contemporâneo. Mas volta e meia penso nisso, nos usos disso. E em particular, penso nisso quando estou nadando. Hoje de manhã mesmo: um dia sombrio, gelado, daqui da janela nuvens carregadas. Chuva, talvez; mais certo era um dia frio, um vento cortante aqui na descida da ladeira, aquelas lufadas vindas do mar que enchem o agasalho. Nem hesitei, nem me passou pela cabeça não ir. E fui. Lá na piscina estava só, junto com dez pessoas, que salvo a mais elementar polidez (“Bom dia”, “Tá usando a prancha?”) ignorei.

2. Utilidade Pública. Projeto inovador e arrojado do camarada DP, que aparece aqui para enlevo de todos.

3. Leituras de fim de semana. Como sempre, a ganância me domina. Mas deve ser algo que inclua a) Shklovsky, A sentimental journey: Memoirs, 1917-1922 ou b) The Letters of John Cheever ou c) Carola Saavedra, Paisagem com dromedário ou d) Margulies, Rites of realism. Além disso, posso garantir que, em algum momento do fim de semana pensarei em a) Henry James (O Mestre, Pessoal, O Mestre!) b) Bolaño (2666 tá na boca do povo, e tem até concurso de resenhas no site da editora!) c) Kelvin (amigo é pra essas coisas) e d) Sylvia Plath.

Como é do conhecimento de vocês, a grande anomalia nessa lista é a presença da famosa poeta suicida. Mas observem essa foto:  imaginem uma poesia de pouca morte, de nenhum desejo de morrer, como a que nós temos quando estamos felizes o suficiente para ir à praia, e uma pessoa querida quer uma foto nossa, e nem pensamos antes de sorrir para a câmera, para o sol, para o resto do dia, para o resto dos dias.