ensaio

Amigos, Literatura

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 14, 2010

1. Uma amiga – pessoa criteriosa, boa leitora, em cuja opinião sempre confio – me diz Antonio, o livro novo do Roth é pavoroso. Que coisa horrível. É triste ver a decadência de um autor tão bom. Ladeira abaixo total. Ouço constrangimento: é como se ela tivesse vergonha da performance manca do autor que, com razão, admira. Eu, que admiro Roth, embora o admire menos que ela, sinto empatia, me sinto próximo do sofrimento dela. Enigma indecifrável, enigma perene: como o Grande Autor faz merda? Como, no Grande Autor, a performance do amador? Onde está o circuito de comentaristas imediatos do Grande Autor para dizer que ele está fazendo merda? Sabemos que as coisas são mais complicadas, me sinto um pouco melancólico com a frustração da minha amiga, assim é a vida literária: nos esforçamos, aqui está nosso tempo e dinheiro, ambos em geral escassos, lemos, e eis que nos fudemos – mesmo com o Grande Autor.

Depois, comentando sobre esse assunto com o Kelvin no gtalk, ele me disse Isso dá um bom título para um livro de um, digamos, filho espiritual de Garcia Marquez: História da Queda de meus Autores Queridos. Muita maiúscula, capa em tons pastéis, talvez um Iberê na capa. Que tal?

2.Leandro, que também é criterioso, um bom leitor, em cuja opinião sempre confio, tem razão: o Voo da Madrugada, do formidável Sérgio Sant’Anna, é irregular. Ele me disse Olha, Antonio, todo mundo elogia o Serjão, você vive evangelizando, falando pra ler o Voo e tal. Mas é o seguinte: aquilo ali parece um livro em que ele passou a mão na gaveta, reuniu uns trocados e mandou publicar. Tem ótimos contos, o do título é um deles, mas tem uma novela meio remendada – O Gorila, que é engraçadinha, mas parece que chegou uma hora que ele deu uma esticadinha e faltou cortar, e ainda tem um ensaio publicado na Bravo!, que li de novo agora dentro do livro e que me pareceu deslocado no volume. E que é bom, é bom – mas fiquei pensando O que é que isso tá fazendo aqui? Olhando as partes, parece bom, mas a soma, pra mim, resultou num livro ruim.

Ouvi isso e pensei, claro, o que qualquer pessoa em minha situação pensaria: Porra, Leandro. Não tenho argumentos – acho o livro excelente, e talvez varra pra debaixo do tapete o que ele salienta porque, vai saber – porque amor é isso, porque leio Sérgio Sant’Anna desde a época em que ele publicava na Status, vai saber. Quando fui lidando de maneira mais exploratória e sistemática com as possibilidades da narrativa curta contemporânea, muitas vezes tinha a impressão de já ter visto aquilo antes – em contos do Sérgio Sant’Anna. Coover? Barthelme? Carver? Parece que, à sua maneira, Serjão já estava lá quando encontrei todos esses autores – e talvez fosse o caso mesmo de avaliar a exposição a certos autores, tradições e possibilidades quando de sua estadia lá na Iowa Workshop: já vejo o título da dissertação: Inflexões, Influências, Procedimentos: Sérgio Sant’Anna na Iowa writers’ workshop, 1969-1970. Mas, só pra gente retornar aqui ao assunto à mão, disse, claro, como dizia antes, Porra, Leandro e disse também, Tá, você tem razão, mas você também tá pedindo demais, demais mesmo. Olha, pensa aí: troco o Conto Obscuro pelas Obras Completas do Paulo Scott, que tal? Tá vendo como eu tô caridoso? Tô saindo perdendo nessa barganha, broder! E ele, claro, riu.

3. O Diego me escreveu um email dizendo, entre outras coisas, que está lendo o Submundo, de Sua Santidade Don DeLillo – eu nem respondi, estou respondendo agora. Não consigo compreender porque meus alunos não aparecem na aula portanto volumes de Don DeLillo – porque dentre tantos alunos que tenho que são obviamente alunos de Letras frustrados e miserabilizados com sua própria incompetência para passar no vestibular para Comunicação, nenhum se dá conta de que há tesouros à sua disposição entre as páginas de um livro de DeLillo, e talvez uma vida menos amarga e menos desencantada adiante. Não vejo a hora de ocupar o púlpito de uma sala de aula ou de um salão de conferência para fazer uma homilia daquele momento em que um personagem em Os Nomes diz “Se eu fosse um escritor, que maravilha seria se me dissessem que o romance está morto. Imaginem que alegria, quanta liberdade, poder trabalhar nas margens, sem a opressão de uma presença central: eu ia ser uma assombração da literatura, que bom”.

Meu volume de Submundo é essa tradução brasileira, do PHB – eu já estava com o livro na mão há um tempão e um dia, em outro lugar (mas onde? não faço a menor idéia) li “Pafko at the Wall” e pensei Porra. Outro dia mesmo comentei aqui, aludindo ao filme da Martel, os diálogos a la DeLillo. Isso deve ser lido assim: “diálogos do caralho”, diálogos que são o bicho”, “diálogos fenomenais”, “diálogos que redescrevem a concepção de diálogo”, “diálogos que são o diabo para quem quer escrever e os lê”. Não sei mais se foi o Rúpia que me deu o livro de presente, ou se simplesmente pedi o livro emprestado e me apossei (de qualquer sorte, obrigado, amigo). Sei que passei uns quinze dias com ele na mão, era na época em que a Lu morava longe e eu andava pra lá e pra cá como um caixeiro-viajante; o livro é um tijolo, é ofensivo um livro daquele tamanho pra quem viaja. Mas isso dá ainda mais razão para meu orgulho ao ver a lombada torta na estante, o livro virado do avesso na leitura, as páginas cheias de sublinhados e grifos e anotações: eu achava que ia escrever algo sobre o livro mas, ao invés, e talvez com mais proveito para todos os envolvidos, só usei o livro para aprender a ler.

Martel, Marx

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 12, 2010

Não é curioso? Assistindo hoje a O Pântano, de Lucrecia Martel, com meus alunos – e era a segunda vez que assistia, a primeira foi logo quando o filme apareceu, em 2001 ou 2002 – observei que o filme parece inverter a máxima marxista que reza que a História primeiro acontece como tragédia, depois como farsa. Observe que a consumição de Luchi – imolado no quintal em uma morte besta que provavelmente teve como causa primeira, além da infância e sua implacável curiosidade, o rato-do-banhado – é primeiro encenada enquanto jogo no mesmo local. Portanto, primeiro a farsa, a ficção, e depois a tragédia.

Podemos também argumentar que a fonte da morte no filme é mesmo a ficção: é a narrativa sobre o rato-do-banhado que engendra o medo que consome Luchi e o medo que o consome é que o leva à morte. A tese para mim é má, pois ofende a ficção, tornando-a fonte do mal – e eu quero que ela seja a fonte da salvação, pois nisso acredito. Mas também acredito que há de ser melhor para a ficção que ela seja má e boa, parêntese da tragédia e tragédia ela também. Estamos falando, afinal, de um filme que em uma das cenas nos mostra um menino caolho, no meio do mato, com uma espingarda apoiada no ombro, tentando insistentemente encontrar alguma coisa no cu de um cachorro.  Um filme no qual os diálogos são puro DeLillo, onde os personagens falam a maior parte do tempo apesar dos outros, e só eventualmente uns com os outros. Um filme que celebra em um passeio na represa, que junta índios e brancos em um breve interlúdio de festividade comum, uma espécie de paraíso friável e fudido. É um momento mínimo, quase invisível, muito volátil – e magnífico.