ensaio

O fim do livro de Maurício Raposo

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 7, 2010

Como em quase qualquer coisa, há uma certa ambiguidade na ocasião do fim da leitura. Alguns livros se permitem o abandono, e com isso o fim da leitura parece uma coisa conquistada, um objeto adicionado a seus pertences. Outros repudiam qualquer sensação de conquista: uma vez finda a leitura, o que continua com você é a perda. Você perdeu, o livro não está mais com você, aquela companhia se foi, e você vai continuar sem ela – e com a sensação da perda.

Assim, você se vê numa noite de quinta-feira, perdido em sua própria casa, pois seu livro terminou: você estava lendo sobre Henry James, algo que tem uma aura toda particular para você: conhecer, ler, usar Henry James é um indicativo de que você se afastou muito da pessoa que era quando saiu de casa, pois você tem uma idéia meio demodê de formação que está indissociavelmente ligada a Henry James e outros luxos afins. Então você passou os últimos dias, uma semana difícil, uma semana hostil, enfiando essa leitura de uma “biografia romanceada” de James nos hiatos entre as tarefas. A denominação é cretina: o livro é ficção: é bonito e bom, e é ficção. Você pensa E daí que flerte com supostos acontecimentos documentados? Quem inventa e não faz isso que atire a primeira pedra. Nossa épica, mesmo que se prove fudida e gasta, é essa: uma invenção vampira, uma criação dependente. Não é secundária, não é necessariamente derivativa – mas por mais que se esforce, e tem se esforçado, não abandona sua amante, que é também sua nêmesis, suas vias de fato.

Está claro que, se você está pensando essas coisas por volta de uma e meia da manhã, sua noite está em alguma medida comprometida e, como um estranho em sua própria casa, você se demora diante da proporcionada desordem das estantes, quer saber o que vem a seguir, quem ocupará o lugar vago, quem virá resolver alguma coisa agora que você terminou de ler The Master, agora que você não sabe mais o que ler, ainda. Você se dirige ao setor Henry James: será a hora de reler algum desses contos? Reler What Maisie knew? Coisas de crítica e comentário: Os prefácios, com o prefácio aos prefácios escrito pelo Marcelo Pen? O capítulo de Eakin sobre os textos biográficos de James? O primeiro volume da biografia de Edel? Saer escreveu um bom prefácio para “The lesson of the Master” – onde está isso? É titubeio, e passa tempo, mas é tudo vão, você sabe: essa noite, essa solidão, é isso que você vai ter.

Então você encontra, enfiado na estante acima dos livros, entre alguns pocket books largados e amarelíssimos, quase impossíveis de se ler agora, e nem são tão velhos assim – The turn of the screw, The Aspern Papers, um Conrad, todos comprados em um balaio que tinha perto do restaurante da UFMG – você encontra uma moldurinha, um porta-retratos barato, com uma foto dos irmãos James, os dois já bem coroas, no jardim da casa de Henry em Rye. Essa foto, que você carrega há mais dez anos, foi parar na moldura como um presente de Natal e de despedida para um amigo, um presente que nunca foi enviado: a legenda, que dizia originalmente William and Henry James, Lamb House, 1900, está riscada e embaixo, escrito à mão, está agora Antonio Marcos Pereira e Maurício Raposo, Belo Horizonte, 2001. A consequência óbvia de encontrar com um objeto desses em tais condições é ponderar vagamente sobre amizade, perda, erro – e, também, claro, sobre a força pálida de alegrias passadas, o prazer de colocar as mãos no bolso do agasalho em um dia frio, o vazio todo particular da espera, a casualidade apropriada da mão no ombro do amigo, do irmão, do cúmplice eletivo, seu abraço.

Enxaqueca, livros, William James, algebra

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 5, 2010

1. Enxaqueca. O repertório de imagens em torno do problema é vasto, já foi bem recenseado pelo Oliver Sacks em seu Enxaqueca, e certamente pode prescindir de minha tosca contribuição – mas a de hoje me fez pensar que a caixa craniana estava gradualmente se enchendo de pedras, depois areia, depois água – na sequencia daquela história infame que circulou abundantemente por aí, e que recebemos em spam, em mensagens de natal, ano novo, o diabo. Eis o horror: além do sofrimento característico de um processo agressivo que é na melhor das hipóteses amansado pelo medicamento,  ainda fui brindado com a lembrança dessa fábula.

2. Silver lining. Para continuar no terreno das analogias férteis, a dupla obscuridade referida acima foi aliviada por algumas páginas, na verdade dois capítulos, do excelente The Master, que já comentei brevemente aqui: cheio de sentenças lapidares, e atravessado por um processo de emulação de um ritmo jamesiano que, embora não seja, obviamente, a mesma coisa, é também excelente, justamente porque não deseja ser a mesma coisa que James. Embora eu não consiga explicitar totalmente minhas razões, acho que há um aprendizado interessante aí – talvez justamente porque não consigo explicitar totalmente minhas razões.

3. Livros. Como na finada – e em geral chata, mas esse aspecto era legal  – coluna do Nick Hornby pro The Believeralguns livros recém-chegados:

3.1. Hamilton, How to do biography: nunca subestime o poder de um manual de instruções americano – são produzidos por pessoas que acreditam nisso para pessoas que acreditam também, e esse pessoal vem fazendo esse negócio há mais de cinquenta anos! Minha esperança, que me torna irmão em  intenção de todos os que buscam livros de instrução para resolver questões da vida, é ver se o livro do Hamilton me ajuda a proceder com menos sofrimento – e, como sempre é meu desejo, mais organização e método – na redação da biografia do Saer.

3.2 Fitzpatrick, The anxiety of obsolescence – The american novel in the age of television: o título me fez pensar em uma história social da minha geração, aquela que foi formada pela TV e que descobriu internet já adulta, mas não é exatamente isso. Fitzpatrick é bem representativa de um tipo de acadêmico norte-americano antenado e multivalente, proficiente no uso de mídias sociais e disponível para investir na ampliação do circuito de conversações ordinário do professorado: o livro que ela está escrevendo agora vai bem em cima dos meus interesses de pesquisa, e foi por aí, quando estava buscando coisas sobre publicação acadêmica online, que me deparei com o trabalho dela. Calhou que ela tinha escrito esse livro que chegou hoje, que também me interessa. Ela foi colega do DFW em Pomona, e escreveu um dos textos do In memoriam DFW. Por fim, já que estamos no assunto,

3.3 Lipsky, Although of course you end up becoming yourself, parte de minha tentativa de me aproximar de DFW usando uma via que facilita minha vida. Foi culpa, inicialmente, de um comentário de Matt Bucher e, depois, de uma conversa comprida com T

Com sorte e vida longa e próspera, tudo isso terá seu dia de comentário aqui. E, para terminar com uma nota positiva um dia lastimável e sombrio, The Master himself: Henry James aos 16 anos, antes de se tornar “Henry James”, como um lembrete de que mesmo os Mestres começaram pequenos.

Não é brincadeira

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 3, 2010

ficar pensando em como corrigir essa bobagem do espaçamento de linhas do blog e se debater com isso e não conseguir resolver – o Gabriel, como sempre muito gentil, até tentou me ajudar, mas nada. Daí, hoje, depois da natação, depois de escrever uma boa página, uma página inteira, sem dilema, sem problema, talvez até sem erro (mas isso só se sabe depois: o que há agora é a sensação de correção e de propriedade, que é muito distinta da própria coisa) – depois dessa glória insuspeita da manhã me permiti mais um capítulo do excelente The Master, de Colm Tóibin – coisa linda – mas – horror – no meio da leitura me percebi pensando Porra, como vou resolver aquele negócio do espaçamento etc. O que é, com toda a tragédia e a comédia que isso implica, uma inegável manifestação disso que chamamos de identidade. Que monotonia.

Mas vamos, agora, à vida social, às lides acadêmicas, ao ganha-pão.Vamos, pois há trabalho a fazer.