ensaio

Saída à Francesa

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on março 14, 2011

Você vem trabalhando há quase um ano em uma biografia: um texto que deve narrar, em alguma medida, episódios da vida de um autor argentino que viveu a maior parte de sua vida na França e morreu recentemente. Suas razões para o empenho são, em certa medida, ponderáveis e solidárias, mas tem também sua cota de obscuridade. Você crê, por exemplo, que parte de seu interesse em produzir uma biografia e em se dedicar com tanto afinco a esse trabalho em particular confirma um traço seu que, na falta de maior possibilidade de precisão semântica vou chamar no momento de subalternidade eletiva: você não deseja ocupar o centro do palco nem em seu próprio livro, quer viver como uma nota marginal a uma reputação já construída, que é a do Autor, e a sua própria reputação seria manobrada obliquamente, adjacente à daquele autor que você admira, e valorizada pela eventual astúcia de uma invisibilidade, em uma espécie de eterna saída à francesa.

Considerando uma insistência do Autor em uma conhecida antinomia de Flaubert – que disse, famosamente, tanto Madame Bovary sou eu quanto Há uma Madame Bovary em cada cidade francesa – você começou a ler biografias de Flaubert e, com isso, lhe ocorreu que não poderia ser de todo ruim ler enfim o Flaubert inteiro, em ordem cronológica, e acabar com isso de uma vez. Ler como se estivesse lendo tudo pela primeira vez (como se isso fosse possível): ler como se estivesse escrevendo uma biografia de Flaubert, ao invés de seu Autor de eleição, numa projeção da qual você espera também retirar alguma coisa, algum insight, alguma sugestão de procedimento ou uma faixa maior de segurança e graça. Você vai ler cada livro de Flaubert, e também os diários de viagem e as cartas; vai ler a biografia de Brown e a de Steegmuller e terminará o esquema lendo mais uma vez o livro que tanto lhe divertiu, o blasfemo e despreocupado Flaubert’s Parrot, de Barnes.

Você está assim, ligeiramente despreocupado, domingo à noite, agora há pouco, vivendo essas suas ficções: que você é um biógrafo, que ler Flaubert lhe faz bem, que você terá tempo. Repleto de boas intenções com seu programa especial, você se vê ao longo da leitura lembrando de outras frases, outras coisas lidas ficam interferindo e chamando sua atenção. É um momento de pequeno horror, você sabe que as frases não são suas, mas você não sabe de quem são, e afinal você também duvida, pode ser que sejam suas mesmo, um artifício de combinatória qualquer que você ignora e, de repente, elas saltam aos olhos porque fazem sentido, porque lhe dizem que tudo que você pensa é usado e de segunda mão, tudo que você vive é mais ou menos caótico, mais ou menos obscuro – e, no entanto, digamos, tudo bem, lá vai você escrevendo a vida de um Autor que você admira e, afinal de contas, de onde vem a admiração senão de um momento de clareza fugaz mas ainda vívido na memória no qual, ao ler, você percebe uma zona de obscuridade em si mesmo, descobre que sabia algo que efetivamente não sabe, mas não importa, pois naquele momento você não se envergonha, você não sabe e nisso, sim, você se dilui, igual a todos e capaz de se esquecer de si mesmo por esse momento que seja, pelo menos.

Joseph Mitchell, Dad, 1992

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on fevereiro 25, 2011

Lembramos daquele comentário de Piglia: um crítico narra sua vida ao escrever sobre os livros que leu – suas leituras inscrevem um padrão de saliências específico nos textos, uma marca de identidade hermenêutica. Isso faz sentido: basta ler o blog do Zé Castello ou o do Kelvin por um mês pra perceber que há algo dessa ordem em operação – não é apenas estilo, é mais um modo de usar.

A publicação recente de uma tradução de trechos dos Diários de Cheever me fez dar atenção ao canto da estante no qual estão depositados meus livros de Cheever – Cheever estava na berlinda, vários conhecidos comentando, então pensei em Cheever de novo, fui me aproximar dele de novo, e fui pro canto da estante onde estão seus livros:

É só um amontoado de livros – mas a história do seu amontoamento é, certamente, uma biografia: o crítico também escreve sua vida nos livros que acumula, como os acumula, como os separa, organiza e controla, o que mantém, o que dissipa. Ora, tenho trabalhado como um cão ultimamente pra escrever uma biografia de Saer – mais: para dar sentido ao projeto de sentar todo dia para escrever uma biografia de Saer. Se esse arroubo a respeito da vida nos livros que se tem funciona, o que faria eu diante de um trecho de prateleira de livros de Saer? Esses livros seriam indício suficiente de quê? Servem para quê, a não ser para serem manuseados por febris epígonos fanáticos, eventualmente fazerem uma graninha para a família, os Nobres Livros do Autor Morto – servem para quê?

Posso favorecer a hipótese da utilidade tomando minha própria prateleira na foto como exemplo: aí estão minha vida em NY (os balcões mais baratos da Strand), uma ex (duas, melhor dizendo), um amigo perdido, a época em que queria ser tradutor, o momento em que parei de fumar (era 2008, janeiro, e estava lendo os Diários de Cheever), etc. Aí está também aquela história do Kelvin indo no Berinjela vezes sem conta e vendo o volume de cartas do Cheever e paquerando o livro sem comprar até que, anos depois, o Berna o enviaria pra mim – exatamente o mesmo livro, passando por dois amigos meus, e chegando a mim graças ao antigo dono, ignorado, sem nome  pra mim, que um dia o depositou lá no Sebo – e como abriu mão das cartas de Cheever, em benefício de quê.

Aí está também, envolvido num papel pardo para proteger um pouquinho a capa, um de meus livros favoritos, o quarto exemplar que tenho do mesmo livro, Up in the Old Hotel, de Joseph Mitchell. Mitchell, que tinha uma paciência de Jó, escreveu esses textos maravilhosos, nos quais não se conta quase nada: são só umas histórias de tipos ordinários, que se fazem envoltos em mistérios vãos acho que mais pela força magnética que a noção de idiossincrasia  exerce sobre nossa espécie que por qualquer outra razão. São histórias de quase nada, e todavia. Lembro de uma época em que lia os capítulos, ritualisticamente, toda terça e quinta à noite: eu não trabalhava nesses dias, e ficava grifando trechos e sonhando em escrever bem (eu também fumava, e nem pensava em parar). Lembro de minha melancolia ao ler Joe Gould’s Secret, e como me surpreendeu o fato de estar aparentemente mais tocado ao ler o texto pela segunda vez, tolamente surpreso por estar contrariando uma regra pseudocristã que dá sempre mais valor ao mais virginal (li esse texto em voz alta uma outra vez, lembro). E outro dia – está fresco, foi agorinha mesmo, agora no Natal – cheguei no hotel de uma visita a mil sebos, cheio de livros, feliz, e com mais um volume do mesmo livro de Mitchell. Deitei na cama, abri o livro e vi, então, a dedicatória.

Problemas da Escrita de si, versão doméstica

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 25, 2010

Um de meus alunos – um bom aluno, com quem já havia trabalhado em outra disciplina – me entregou um desses textos autobiográficos que costumo pedir que produzam nas primeiras aulas dizendo Esse foi um dos textos mais difíceis de produzir pra mim, acho que foi o texto mais difícil que eu produzi na faculdade.

Há uma certa perplexidade de minha parte; penso que, se o texto trata do assunto “eu”, considerando ainda por cima toda a configuração contemporânea, nada mais imediato e automático, não devia haver dificuldade. Onde está o problema?

Por essa via, a perplexidade logo dá lugar a alguma perspectiva e, talvez, algum entendimento do que pode estar em jogo: colocar-se no texto não é necessariamente fácil, a escrita de si também tem seus desafios, a configuração do que é aceitável dizer na academia é em geral adversária desses exercícios, escrúpulos sempre estão associados a dificuldades – por aí vai.

No negócio de escrever, a clareza e o enigma: o estar disponível para a escrita, o que é minimamente necessário para que se escreva. Barthes, em Uma espécie de trabalho manual, comenta o caráter artesanal da escrita, dizendo que a própria lentidão da escrita o protege. Proteção, abrigo, defesa: de quem, de quê? Claro, também se escreve com pressa – mas essa escrita à qual Barthes se refere solicita certa lentidão, acolhe a hesitação como princípio ativo, não arremete nem corre. Responde, antes do ocorrido, à frase Publico x textos por ano, que ouvi outro dia, ostentada por um idiota que é, inclusive, como é costumeiro, tido por proto-idiotas como modelo moral: o mané diz sem hesitar, confirmado pelo espírito de época, como se houvesse valor necessário aí.  Saer, como sempre aparecendo em minhas conclusões – o que diz que as conclusões não são, de fato, minhas, mas sim dele – fala, em uma entrevista, de sua predileção pelos cadernos, pela escrita a mão, pela materialidade de uma relação com o fluxo do que se escreve que, em sua particularidade, produz uma pontuação, conduz a uma sintaxe, do mesmo jeito que a falência do fôlego forja a frase de um jeito ao invés de outro. Uma coisa que, em outro, eu tenderia a repudiar, mas que dita por Saer soa, obviamente, distinta para mim: fazendo um elogio da escrita como metempsicose, que tema mais borgiano, Saer diz que escrever é uma espécie de translado no qual o vivido passa, através do tempo, de um corpo a outro. E, como é Saer quem disse, e como sou eu quem lê, algo acontece que me faz não apenas ler o que meu aluno disse daquela maneira há dois dias mas, também, escrever isso aqui.

Academic Tour 2010

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 24, 2010

O curso, o simpósio, a jornada. As questões dos alunos, as conferências, os debates. O clima eventualmente falanstérico do simpósio, o igualitarismo, os bons modos, a atenção cuidadosa, a argúcia, a minúcia, o zelo, a modéstia. A alegria adventícia dos consórcios improváveis. O turismo acadêmico. Os desejos, o burburinho, o tédio, o cansaço.

O novo semestre, os alunos novos, os alunos velhos, os colegas de sempre, o mesmo prédio, o rotineiro, as expectativas cristalizadas, os desejos de mudança, os hábitos arraigados, o encanto da rotina, o massacre da rotina. O valor de verdade da crítica, a ficção como um problema, o caso Defoe, por uma nova poética do ensaio, crianças diante do mistério dos laços familiares.

Se perder em uma manhã qualquer, em uma rua de Buenos Aires. Ser de novo jovem, cheio de riscos a correr. Reencontrar-se com seus heróis, seus homens de papel, sua vida romanesca, seus agasalhos tardios, seus trinta anos. Ser de novo um leitor, um candidato a algo, menos melancólico, um figurante em um filme da nouvelle vague, um amigo do Autor, um crítico literário, um professor e, num dia de inverno, diante da porta, hesitar um pouco, não por receio, mas pelo prazer da delonga e do tempo sem custo.

Opoyaz, ganha-pão

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on junho 2, 2010

Eis que Kelvin aparece com mais dois posts muito bons, aqui e aqui. Ele está falando de coisas em meu terreno – que é também, em certa medida, o dele. Em que pesem todas as diferenças geracionais e estilísticas, ler, falar e escrever sobre Saer, Piglia, e mesmo Aira é parte do que põe o pão na mesa pra nós dois – nós dois participamos dessa fortuna.

Falei pra um amigo outro dia, Esses blogs são minha Opoyaz. Claro: uma Opoyaz ralé, pós-pós-tudo, cheia de Pro-Ams, sem tanta solidificação quanto sua matriz e inspiradora involuntária, sem manifesto, provavelmente mais apta a acolher diferença e vacilação que a versão anterior, privada de gênios. Mas é um coletivo que mantém uma rotina de conversações e barganhas que nutre as produções de cada um; com sua particularidade faz uma coisa que, independente de qualquer telos desejado ou projetado, é vida literária no século XXI.

Por exemplo: há alguns dias, o assim-chamado Andreis Passarinho publicou em seu blog uma análise sinóptica do trabalho de Bernardo Carvalho. É um post de umas mil palavras, mais de seis mil caracteres: é bem mais do que tenho quando escrevo pro jornal. Salvo engano, aí está ele a usar seu blog para fazer um negócio que, na falta de melhor palavra, é crítica literária. Observem que o crítico anota a obra, se posiciona, exibe o comentário na esfera pública – se isso ainda não é crítica, não sei o que é, e vou me poupar de brandir Terry Eagleton por hora.

Postei em uma comunidade do Orkut que modero um comentário sobre o texto do Andreis; disse:

Eu concordo e discordo ao mesmo tempo com quase tudo! O básico é que os aspectos que o crítico usa para malhar são para mim sinal de excelência: acho que BC se esforçou bastante para produzir dois grandes livros – o Nove Noites e o Sol se põe em São Paulo – e agora está iniciando um outro negócio, que vamos ver no que vai dar.

Eu teria, terei muito mais a falar sobre BC – como vcs ja sabem. Já escrevi sobre o cara, e não tenho problema em dizer que o “estudo”, que o que ele faz é incorporado por mim a parte de meu trabalho tb. Mas, antes de meter minha colher, queria ver o que vcs acham do post aí. O que vcs acham?

E, em questão de horas, li que o Diego Giesel pensava que

AM, quando o Andreis falou sobre o Vida modo de usar eu pensei a mesma coisa. Concordo e discordo.

E que o Refrator de Curvelo, por sua vez, achava que

Não. Eu tendo a concordar. Estou mesmo incomodado com as coisas que o Andreis escreveu. E não se enganem. Defendi, com relativo sucesso, nosso Bernardo Carvalho em algumas situações e tenho o sujeito como um baita artesão de letras que, inclusive, me causa inveja. É bom ter por aí alguém que sabe o que está fazendo. Mas falta algo.

Não gosto, contudo, de pensar que a responsabilidade do que falta é do Bernardo Carvalho. Esta é uma perspectiva crítica desmobilizadora, e muito cínica. Falta que os sujeitos que tenha coragem para errar consigam fazer isso com competência, e não com a cara cheia de pó ou coisa parecida. Que BC é um engenheiro, isso é. Que faz transplantes narrativos (coisa que o Andrei não fala, mas me salta aos olhos; é fácil encontrar Perec em “Teatro”; Bernhard em “As iniciais”; Chatwin em “Nove noites” – e encontrar eu digo encontrar, mesmo, como se fosse para tomar um chazinho ou encher a cara), também está lá. E faz bem, com maestria. O que está faltando é o resto que Bernardo Carvalho não é. Inclusive, ele não é outras pessoas. E isso, hoje, não temos. Outras pessoas.

C´est ça.

E já o Leandro disse

Eu também concordo e discordo ao mesmo tempo com quase tudo. Nove Noites e O Filho da Mãe são dois grandes livros. AM, acho que o O Sol se põe… tem um grande defeito, de inserir uma personagem que não tem nenhuma utilidade (a irmã do protagonista no Japão). O defeito que ele vê, de alguém que trabalha sempre com as mesmas peças, pra mim é uma grande qualidade. Algo failbettter.

Há outras contribuições, mas vou abdicar de arrolar todas aqui. Agora me diga você a que vem interditar essa conversa do status de crítica. Vá lá que não é Teoria, não se trata disso  mas há, aqui, especulação e empenho da atenção no tratamento da “matéria literária”. Claro: o estado é de embrião, e precisa de mais tempo e condições para acontecer, e só eventualmente se transforma, e sai dessa coisa mais dispersa e ligeira para virar outra coisa, coagulada em um comentário mais recheado de argumentos e com a devida arrecadação de evidências e desfile de justificativas. Observe que nesses comentarinhos, que seus autores escreveram provavelmente entre uma obrigação e outra, no meio de um dia ordinário, ou se refastelando numa procastinação comezinha e culpadinha, como é por exemplo do meu feitio, há, principalmente, leitura, e conversação sobre a leitura – e sem esses dois ingredientes, nosso ganha-pão cai por terra fácil.

Esse ganha-pão é difícil, mas também bom. Pode ser executado com retidão, e pode ser feito de maneira escrotinha. Pode se beneficiar muito de uma certa obnubilação – que, se vampirizada com destreza, garantirá ao picareta um modus vivendi relativamente folgado e privilegiado, com pouca chance de desmascaramento público – e é sempre bom lembrar que a casa também faz às vezes de asilo de dementes, de inviáveis alhures que aqui encontram abrigo. Esse ganha-pão pode, enfim, trazer uma alegria no processo, um esquecimento eventual do produto que se liga a recuperações infantis, a curiosidades atiçadas ad eternum, e distribui epifanias no ordinário; mas pode ser uma faina frustrante e amarga também, uma litania do ganho pouco, do me falta, etc.  É ainda possível que, como diz Bloom, esse negócio esteja agora em sua condição crepuscular. Mas, claro, ainda não: não viveremos pra ver isso.

Opoyaz on the beach

Martel, Marx

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 12, 2010

Não é curioso? Assistindo hoje a O Pântano, de Lucrecia Martel, com meus alunos – e era a segunda vez que assistia, a primeira foi logo quando o filme apareceu, em 2001 ou 2002 – observei que o filme parece inverter a máxima marxista que reza que a História primeiro acontece como tragédia, depois como farsa. Observe que a consumição de Luchi – imolado no quintal em uma morte besta que provavelmente teve como causa primeira, além da infância e sua implacável curiosidade, o rato-do-banhado – é primeiro encenada enquanto jogo no mesmo local. Portanto, primeiro a farsa, a ficção, e depois a tragédia.

Podemos também argumentar que a fonte da morte no filme é mesmo a ficção: é a narrativa sobre o rato-do-banhado que engendra o medo que consome Luchi e o medo que o consome é que o leva à morte. A tese para mim é má, pois ofende a ficção, tornando-a fonte do mal – e eu quero que ela seja a fonte da salvação, pois nisso acredito. Mas também acredito que há de ser melhor para a ficção que ela seja má e boa, parêntese da tragédia e tragédia ela também. Estamos falando, afinal, de um filme que em uma das cenas nos mostra um menino caolho, no meio do mato, com uma espingarda apoiada no ombro, tentando insistentemente encontrar alguma coisa no cu de um cachorro.  Um filme no qual os diálogos são puro DeLillo, onde os personagens falam a maior parte do tempo apesar dos outros, e só eventualmente uns com os outros. Um filme que celebra em um passeio na represa, que junta índios e brancos em um breve interlúdio de festividade comum, uma espécie de paraíso friável e fudido. É um momento mínimo, quase invisível, muito volátil – e magnífico.

Enxaqueca, livros, William James, algebra

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 5, 2010

1. Enxaqueca. O repertório de imagens em torno do problema é vasto, já foi bem recenseado pelo Oliver Sacks em seu Enxaqueca, e certamente pode prescindir de minha tosca contribuição – mas a de hoje me fez pensar que a caixa craniana estava gradualmente se enchendo de pedras, depois areia, depois água – na sequencia daquela história infame que circulou abundantemente por aí, e que recebemos em spam, em mensagens de natal, ano novo, o diabo. Eis o horror: além do sofrimento característico de um processo agressivo que é na melhor das hipóteses amansado pelo medicamento,  ainda fui brindado com a lembrança dessa fábula.

2. Silver lining. Para continuar no terreno das analogias férteis, a dupla obscuridade referida acima foi aliviada por algumas páginas, na verdade dois capítulos, do excelente The Master, que já comentei brevemente aqui: cheio de sentenças lapidares, e atravessado por um processo de emulação de um ritmo jamesiano que, embora não seja, obviamente, a mesma coisa, é também excelente, justamente porque não deseja ser a mesma coisa que James. Embora eu não consiga explicitar totalmente minhas razões, acho que há um aprendizado interessante aí – talvez justamente porque não consigo explicitar totalmente minhas razões.

3. Livros. Como na finada – e em geral chata, mas esse aspecto era legal  – coluna do Nick Hornby pro The Believeralguns livros recém-chegados:

3.1. Hamilton, How to do biography: nunca subestime o poder de um manual de instruções americano – são produzidos por pessoas que acreditam nisso para pessoas que acreditam também, e esse pessoal vem fazendo esse negócio há mais de cinquenta anos! Minha esperança, que me torna irmão em  intenção de todos os que buscam livros de instrução para resolver questões da vida, é ver se o livro do Hamilton me ajuda a proceder com menos sofrimento – e, como sempre é meu desejo, mais organização e método – na redação da biografia do Saer.

3.2 Fitzpatrick, The anxiety of obsolescence – The american novel in the age of television: o título me fez pensar em uma história social da minha geração, aquela que foi formada pela TV e que descobriu internet já adulta, mas não é exatamente isso. Fitzpatrick é bem representativa de um tipo de acadêmico norte-americano antenado e multivalente, proficiente no uso de mídias sociais e disponível para investir na ampliação do circuito de conversações ordinário do professorado: o livro que ela está escrevendo agora vai bem em cima dos meus interesses de pesquisa, e foi por aí, quando estava buscando coisas sobre publicação acadêmica online, que me deparei com o trabalho dela. Calhou que ela tinha escrito esse livro que chegou hoje, que também me interessa. Ela foi colega do DFW em Pomona, e escreveu um dos textos do In memoriam DFW. Por fim, já que estamos no assunto,

3.3 Lipsky, Although of course you end up becoming yourself, parte de minha tentativa de me aproximar de DFW usando uma via que facilita minha vida. Foi culpa, inicialmente, de um comentário de Matt Bucher e, depois, de uma conversa comprida com T

Com sorte e vida longa e próspera, tudo isso terá seu dia de comentário aqui. E, para terminar com uma nota positiva um dia lastimável e sombrio, The Master himself: Henry James aos 16 anos, antes de se tornar “Henry James”, como um lembrete de que mesmo os Mestres começaram pequenos.

Primeiro de Maio

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 3, 2010

1. Fato: Quase um mês sem um post. Mas sem desculpas: há mil e uma maneiras de fazer anotações, e esta é apenas uma delas.

1.2. Razão: Boa parte do tempo assim-chamado livre foi dispendido frequentando o excelente blog que, aliás, estava lá, na última nota que escrevi aqui. Por conta da folia em torno do texto da Flora Süssekind, terminei lendo blog pra chuchu esses dias. Mas, claro, houve mais, muito mais: aulas e correção de trabalhos, como sempre; um evento protagonizado por um grupo com o qual trabalho, que aconteceu com sucesso, embora eu estivesse um pouco abatido durante toda a semana, com um mal-estar indefinido, uma espécie de gripe encruada que foi forte o suficiente para me impedir de ir à natação (!); resenhas para O Globo: já saiu a do poeira: demônios e maldições, do Nelson de Oliveira e por sair estão as do Doutor Pasavento, do Vila-Matas e a do Verão, do Coetzee.

1.2.1 Fato peculiar: O AX escreveu resenhas em paralelo às minhas para os livros do Vila-Matas e do Coetzee – por email, comentamos a coincidência, e fiquei pensando se isso dizia algo sobre as características desse trabalho no Brasil hoje. Mas logo me censurei por estar querendo extrair sentido disso também. Por que isso deveria ter algo a dizer?, pensei. Tem coisas que só acontecem, não tem de ser instâncias de outra coisa – embora, claro, sempre possam ser outra coisa também, como aliás a literatura é pródiga em mostrar.

2. Leituras: Além dos livros mencionados e mais um outro, que comentarei aqui depois (é este aqui), li várias coisas em torno de biografia para o ensaio que estou preparando para o JALLA; o mais digno de nota foi um artigo de Hibbard, “Biographer and subject: a tale of two narratives”: excelente, casos bem costurados, pouca conclusão e até, diria um leitor com má vontade, pouco “aprofundamento” – mas bom justamente por isso, porque abdica de dizer tudo, porque esboça o problema, esclarece as vias de ataque selecionadas pelo autor, e sai de cena – fica o leitor, com seus problemas. Bom, isso é bom.

2.1 “Bom”: Um post futuro reclama ser escrito sobre a criteriologia ordinária que me leva a dizer que, por exemplo, o artigo de Hibbard é “bom”. Ano passado escrevi sobre isso, depois apresentei outro trabalho numa mesa sobre isso – é o bendito tema do valor literário, mais uma vez aparecendo para me assombrar. Outro dia estava relendo esse texto do Jaime Ginzburg e pensando no quanto me custaria produzir uma réplica mais consequente do que as anotações que já fiz a respeito do artigo dele aqui e ali. Há algo no tema que me estimula, em parte acidente de formação (minha relação com BHS, por exemplo, que não é nada trivial no que diz respeito a esse assunto), em parte por saber que o debate é sempre quente nesse setor, e potencialmente infinito – e isso me deixa com vontade de dizer algo a respeito, de participar da conversação. Bom, isso é bom – pra mim.

3. Romance de formação: No telefone, minha irmã comentou Como é que você bota no seu blog um post de Romance de Formação com três discos e nem menciona o LC? Eu poderia ter me desculpado dizendo a verdade – que o referido post foi pensado como o primeiro de uma série, todos com aquela mesma característica, discos e uma historinha pessoal. Mas, ao invés disso, senti vergonha, como se eu tivesse feito, inadvertidamente, uma coisa má para um amigo – uma coisa que em mim teria sido só um certo descaso, mas no amigo teria causado tristeza e sofrimento. Então vim remediar o mal e fazer aparecer aqui o Durutti Column, LC, comprado na Mesbla, em 1986.



Don Jorgito, Roberto Bolaño & Cia

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on março 26, 2010

Lembro de uma vez conversar com um amigo classicista que já era professor  na época em que eu era ainda um pseudocandidato ao posto; é um amigo querido com quem há muitos anos não converso, ele foi morar em Estraburgo, eu fui pros Estados Unidos, eu me casei e me separei, ele também – enfim, a vida deu uma daquelas torcidas que terminam convidando o afastamento a não ser que a gente resista à manifestação da lei da entropia nas relações humanas.

Um dia ele me disse como gostava desse trabalho, como era bom lidar com gente jovem, e como era boa a mudança dos semestres, como era bom ver as pessoas aparecendo na graduação, demonstrando interesse por alguma coisa e avançando, e aparecendo no mestrado, e caminhando na vida, e construindo alguma coisa nesse negócio que a gente chama de vida acadêmica.

Ele, claro, dourou a pílula, mas era uma percepção genuína. Lembrei dele hoje: estava exausto, e eram apenas dez e meia da manhã. Você vê um professor universitário em início de carreira e não faz idéia da carga de trabalho envolvida no negócio. Há, claro, pares lenientes, atire a primeira pedra quem não os tem, que fazem da estabilidade e dos acolchoados ligados ao espírito da guilda a infâmia do ofício. Mas há  muito mais que isso – ou você achava que se resumia a isso, e que estava coberto de razão quando demonizava a academia inteira? – e, no meio das mil coisas que fazem esse ganha pão, há muito que nutre o interesse, multiplica o empenho, mantém a atenção presente e estimula o desejo de elevar e honrar o ofício.

Assim, hoje, quando no meio de meus afazeres lá com o Túlio, o Juan bateu na porta e nos interrompeu para me dar um pacote de Jorgito, lamentei não ter tempo de dar atenção a ele, lamentei quanto tempo faz que não conversamos.  Mas não lamentei fazer as coisas que fiz pra que um dia eu tivesse sido professor do Juan e, por acaso, no intervalo de uma das aulas, na época em que eu ainda fumava, tivéssemos fumado juntos no corredor, e falado de Aira e de Adán Buenosayres, que dali a uns anos ele me daria de presente naquela edição linda da Archivos, e aquela vez em que falamos de outras coisas da vida e eu disse pra ele que precisava parar de fumar, e nos perguntamos se César Aira fumava, Saer com certeza fumava e não era pouco, e você não acha que Saer se refletia mesmo era em Tomatis, tipo fazia daquele personagem em particular seu alter ego? Não?  E, com essas coisas todas na cabeça, terminei desistindo do post que planejei fazer hoje, no qual falaria do chute no saco que são as resenhas de Bolaño nas quais ele enche a bola de todo mundo, mas especialmente a dos amigos dele, que grande aborrecimento ver aquela ladainha de loas, aquele desfile de magníficos, ninguém que jamais tenha levado porrada, e falaria também de um texto sobre o valor do não na crítica que li hoje ligando isso à prática de Bolaño como comentador de literatura, e de alguma maneira ia enfiar também aquele incidente grotesco de quando Bolaño já autor celebrado foi ao Chile e depois saiu escrevendo textos nos quais jogava todo mundo que encontrou na fogueira, uma vingança verbal tardia que termina sendo uma espécie de homenagem aos escrotos, e talvez falasse sobre aquele texto que planejo há tanto tempo, sobre a articulação entre escrotos e fudidos na poética de Bolaño e, claro, em algum momento comentaria também sobre o bruto labor que às vezes é produzir um comentário sobre um livro para, no final, pensar em Bolaño passeando na praia, um pouco cansado, está meio abatido, cumprimenta uma senhora sua vizinha, dia de muito trabalho no livro, saiu do escritório e foi dar um passeio na praia, a marina cheia de barcos, e ele vê os barcos soçobrando um pouquinho e se pergunta se isso está certo, se você julga que isso está certo, se você acha que a vida é assim mesmo do jeito que você pensa que é.

Analogia

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on outubro 19, 2009

O assunto tem uma conexão imediata com Narrathon, título de um ensaio escrito por Saer em 1972, 1973 e que aprecio a ponto de tê-lo lido mais de dez vezes, escrito um texto a respeito, e estar envolvido com a escrita de outro texto na mesma praia. Nesse ensaio, Saer dramatiza sua experiência inicial com o significante novela: diz que foi apresentado ao termo quando criança, quando suas irmãs se diziam, ou se perguntavam, ou se organizavam em torno de la novela, referindo-se à rádio novela, que nunca perdiam, que ouviam apaixonadas, e torciam, e celebravam, e choravam. E daí ele prossegue para falar de sua relação com la novela, a narração, a ficção. O resultado é magistral.

Há uma contrapartida pessoal e, obviamente, mais modesta: num momento que deve ter sido bem próximo ao momento em que Saer escrevia seu texto, lembro de meu pai, diante de algum filme (ou seriado?) na televisão dizendo Isso é ficção, meu filho, isso é um filme de ficção.  Mais adiante haverá um entendimento da elipse – de alguma maneira, vou aprender que nesse momento, o que meu pai queria dizer com ficção era ficção científica. E muitos anos depois haverá um entendimento mais elástico do termo – treinado na academia e em uma área relacionada a isso, vou passar a tratar de ficção como um conceito, ficção científica como um gênero, etc.

O que esse incidente diz sobre minha relação com o problema mais amplo e com esse gênero em particular? Ou, colocando a mesma questão de outra maneira, que espécie de fantasia infantil operava em mim quando, assistindo Distrito 9 há alguns dias, subitamente lembrei disso? Ao sair da sessão pensei nas razões para a miséria desse gênero, para sua condenação a um lugar de literatura menor, sub-literatura, coisa de adolescente, coisa datada. Pensei que, se penso diferente, se penso outras coisas sobre ficção e ficção científica, não seria por uma particularidade construída nesse primeiro encontro, nesse primeiro colapso entre uma coisa e outra?

Analog