ensaio

Tenho quatro amigos

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on setembro 20, 2014

O primeiro é bonito, vaidoso, encantador: é um mitômano, uma espécie de perene ficcionista da oralidade, vive tecendo suas histórias enquanto ajeita a roupa e o topete, e ergue as sobrancelhas, como se passasse marca-texto no que diz, e confirmasse com seu interlocutor alguma coisa que é da ordem do pacto de bastidores que travaram antes da conversa, no qual tudo foi acertado. Nos conhecemos assim, nos arredores de nossas mentiras, e de lá nunca saímos, o amor pela ficção um elixir que tudo cura, e um certo comunismo de minha parte que garante um atrito útil com um certo fascismo da parte dele. Ficamos embevecidos quando, depois da décima cerveja, ele se dedica a erguer alguma revelação, esboçar alguma narrativa que, sendo sempre mentira, nos dará algum encontro com o novo, o inusitado, o insólito, o belo. É muito generoso, e todas as vezes causa problemas nas contas de bar por querer pagar demais; sua motivação nunca é a culpa, sempre é a alegria. Costuma dizer que é invejoso, e que deseja ser autor, ostentador, magnata cultural. Mas essa é outra de suas ficções: o que deseja é estar ali, centro magnético da mesa de bar, ou caminhando pela Rua da Glória, marionetando suas histórias, sua audiência, confiante no abraço de despedida feliz no fim da noite. Uma vez, estando com ele em um bar repleto, chorei; no bar cheio, era notável que as outras mesas se interessavam pela anomalia de um adulto se emocionando em lugar impróprio: ele se manteve impassível e solidário, silencioso, ouvinte, amigo.

O segundo é quieto e reservado; sei que é meu amigo, e na medida em que nossa vida errática permite sempre atesto com felicidade os esforços que ele faz para me encontrar, muitas vezes para que a gente converse bem pouco, como se não precisasse mais disso. Uma versão das amizades inglesas preconizadas por Borges, excluindo de saída a vulgaridade da confidência e prescindindo do diálogo sempre que possível. Dizem que era tímido na adolescência e, embora hoje esteja longe dessa coisa própria da timidez que é o impedimento à vontade, ainda parece se comunicar com essa área da experiência de uma maneira que me é alheia; me atribulo no trabalho (carreira, projetos) e na vida (dinheiro, brigas) de um jeito que parece nunca ter sido problema pra ele, senhor tranquilo de um saber que não possuo aí. Nosso horizonte de conversas se concentra em nossa experiência com nossos pais; nossos problemas com a literatura; nossas perturbações com as mulheres. Há coisa de um ano ele estava morando em X, cidade onde morei há muito tempo e que virou uma espécie de explicação e signo místico para mim, lugar em que me reconheci como pertinente e pertencente ao mesmo tempo em que me sabia excluído e menor, em um processo tão ambivalente que até hoje imagino ser essa uma de minhas características mais fáceis de detectar. Nos falamos no skype, ele muito triste e com frio, e fiquei numas de animar ele recuperando momentos de minha vida lá, perguntando “Ainda tem isso em tal rua?”, “Ali na esquina de A com B tem tal coisa”, “Você já foi em Z?”. Recuperava aqueles lances de memória já muito manipulados e gastos pelo uso, mas dessa vez com ele como protagonista, ele nas ruas em que andei, ele com minha calça jeans e camiseta branca, ele admirando coisas, experiências, mulheres inatingíveis, inesquecíveis.

O terceiro mora em um quarteirão solitário, perto da praia, numa casa repleta de livros. Seus irmãos, muitos, foram se mudando e ele foi ficando: vive com os móveis e objetos dos anos oitenta de uma casa que precisa de pintura, a casa onde ele nasceu e cresceu e onde continua até hoje. Minha admiração por ele é quase infinita: sua delicadeza tranquila, um homem corpulento, de quarenta anos, que nunca parece ter se desgastado tentando provar nada para ninguém e que portanto é desprovido da carapaça na qual eu, por exemplo, investi tanto tempo e dinheiro. É muito erudito (lê em russo) e rodado (passou dois anos vivendo no leste europeu; antes, morou num kibbutz) e é um dos melhores autores de sua geração, maior ainda por parecer não se importar com fato de ser quase desconhecido e seriamente desprestigiado para quem tem tanta imaginação e força, abundante a ponto de permitir que ele publique naquela lata de lixo da história que é o facebook posts como esse

Quando meu pais eram vivos sempre esperávamos uma visita que nunca chegava. Tínhamos que estar de banho tomado, com roupas sempre limpas, cabelo penteado. Alguém, nunca soubemos quem, podia chegar a qualquer momento na nossa casa. Os móveis tinham que estar impecáveis. Os brinquedos trancados em um quartinho. Minha mãe forrava a cama enquanto eu ainda estava dormindo sobre ela. Naquela época eu ainda não sabia, mas no meu caso a visita eram os livros. Essa é a minha love story, como diria Haňt’a. Escrevo isso enquanto indico um livro para uma amiga. Escrevo enquanto lembro da minha leitura de Jardim, cinzas, de Danilo Kiš. Escrevo enquanto, sem pensar muito, defino assim o livro para uma amiga: É como se o Tio Pepin de Hrabal irrompesse nos salões do Palácio dos Sonhos de Sandman e lá encontrasse as crianças da Rua Paulo e todos dançassem o Čoček.

Ou esse:

Devo a César Aira a ideia que os acidentes de memória criam todo tipo de monstros. Às vezes lembramos algo que já não sabemos se aconteceu daquela maneira ou foi nossa imaginação que criou e preencheu as partes que estavam faltando com simulacros dos acontecimentos, como os dinossauros do Jurassic Park criados a partir de rãs. Assim também são com os livros que nos surpreendem quando procuramos um trecho que imaginávamos de outra forma. Assim é com os livros que li, assim é com Moby Dick, assim é com Extinção. Ambos são relatos obsessivos sobre a extinção. E provavelmente não foi assim que aconteceu, mas foi assim que lembrei: Queequeg é Gambetti. Bernhard e Melville escrevem antibiografias. A grande baleia branca é a Áustria nazista. O redemoinho no mar e na linguagem. O apagamento da origem, da nação, dos pais, do poder. O curto-circuito entre memória e esquecimento. A carta nunca entregue de Kafka ao seu pai.

A menção a Aira não é trivial para mim: conheci Aira por ele, que me enviou um livro, Um acontecimento na vida do pintor viajante, que foi meu primeiro Aira, e que terminou me levando a escrever uma tese sobre Aira. O livro, lamentavelmente, se perdeu em minhas separações e mudanças, mas recordo que a dedicatória dizia, aludindo a minha pobreza e quase impossibilidade de comprar livros novos Meu amigo, ganhar não é comprar.  É o único de meus amigos que tem a barba cheia, o mundo não sabe apreciá-lo, não conhece a alegria de sua proximidade em uma mesa de café, ao redor de uma pizza, a seu lado, caminhando, na calçada, na parte velha da cidade. 

Esses são os quatro amigos.

Prague, Hrabal

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on novembro 26, 2013

Estava escrevendo um ensaio sobre Levrero, o primeiro que escrevo sobre sua obra, e na verdade algo menos, menor que um ensaio: era uma participação em uma mesa-redonda, um discurso breve, de meia hora, para uma audiência heterogênea.

Me custou escrever: havia muito o que dizer, ou assim imaginava, e havia um ruído de fundo que tem me esgarçado um pouco, sedando certas habilidades, me deixando em geral um pouco distraído mas, o que é um pouco lamentável, não inconsequente. Assim, o quadro é tal que a preocupação vem, com sua gana de consumo, mas gera pouco resultado, como se eu testemunhasse a aflição sem medo, mas sabendo de seus custos. Lembro de fingir que era um fantasma me cobrindo com um lençol e acreditar que as pessoas não sabiam quem eu era: é algo dessa ordem. Ao longo do último mês fui lendo e amealhando notas e notas sobre La Novela Luminosa, e fui conduzindo essas notas ao estado de ensaio, construindo um argumento nas fichas, cotejando a marginalia com o que já tinha lido de recepção a Levrero. Muita coisa, muita confusão: não é assim que se faz, não é assim que se fala. Uma coisa de cada vez.

A primeira ideia que tive para o texto foi explorar uma espécie de epistemologia de esquerda que aparece em Levrero e que passa pela valorização de incidentes sincrônicos, de eventos de ocorrência relativamente frequente para mim também, mas que tendem a ser deslidos pela gente como nada. Para isso me ajudavam alguns ensaios formidáveis da Luciana Martinez, que exploravam justamente essas conexões, digamos, parapsicólogicas em Levrero, e que avançavam no entendimento de uma proposta particular de saber literário, de saber da literatura, saber da ficção, que emana de alguns de seus escritos, em especial de La Novela Luminosa.  Isso foi reforçado por um post e uma conversa com o Rafael, quando nos encontramos lá na Tijuca, da última vez que estive no Rio. O que é que magnetiza o evento coincidente, os fatos do mundo que convergem com os fatos da leitura, quando se lê esse livro que tematiza justamente isso? É efeito do deslocamento de atenção que o próprio livro provoca, atraindo nosso olhar para matéria em geral presente, mas que tende a se fazer mais saliente ao observarmos que lá, na narrativa, o personagem com o qual estamos convivendo está prestando atenção nessas coisas?

A primeira vez que ouvi falar em Levrero estava em Buenos Aires, em 2008, indo lá pela primeira vez, gastando o que não podia comprando livros na Hernandez da Corrientes, e ao meu lado ouvi um homem falar em Portunhol fluente com o vendedor, indagando Que teneis de Mario Levrero? E então eles entabulam uma conversa, discreta e fugidia, e parece que me lembro de falarem sobre a “trilogia”, e que a certa altura o homem – grande, gordo, careca, branco, seus quarenta e tantos anos, terno e gravata, digamos um advogado gaúcho – diz ao vendedor Soy brasileño, e então me distraio da conversa alheia, registro o nome do autor, a coisa sobre a trilogia, e sigo meu caminho. Hoje duvido que essa tivesse sido uma primeira vez, pois o que teria trazido à minha porta aquelas palavras, aquele intercurso entre cliente e vendedor? Muito se ouve, tanto se esquece, mas de onde a durabilidade daquilo. Assim é que anos depois, quando estava lá em Buenos Aires de novo, já muito íntimo da cidade ou assim me achando, quando saí da casa de Cesar Aira e fui caminhando Rivadavia afora em direção à UBA – para desanuviar, para espairecer, para deixar que algo em mim perdurasse, ou permanecesse – me embrenhei na universidade, lá fiz minhas coisas, ou fingi que fiz, e na saída entrei naquela livraria logo ali, no quarteirão seguinte, Gambito de Alfil: excelente acervo, excelente livreiro, adorador, como tantos argentinos, do Presidente Lula. Estou então cruzando a rua, de olho no kiosko, pois sinto sede, está um pouco frio, e olho pro relógio, tenho tempo, entro na livraria, me lembro do leitor de Levrero de anos antes, em outra vida minha, em outra livraria, em outra rua de Buenos Aires, e vejo imediatamente um exemplar de La Novela Luminosa diante de mim, no primeiro balcão que paro para examinar. A precognição talvez seja muito subestimada, não sei se tinha tido uma impressão fugacíssima do livro antes da lembrança, me parece que a lembrança fez o livro aparecer diante de mim, que a memória me moveu e ajudou, Teneis algo de Levrero? A lembrança foi o amigo a me conduzir naquela hora cheia de misturas, de agonia, de aflição, mas também das felicidades todas que a Argentina sempre foi pra mim, Soy brasileño, e me pergunto por que não assim, se assim foi pra mim.

Em setembro de …

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on julho 27, 2012

Em setembro de 2011 comprei um livro intitulado Magical Writing in Salasaca. Na época eu estava interessado em estudos etnográficos do letramento, e o livro aparecia com boas resenhas: um cara vai numa vila no sertão do Equador e faz um inventário dos usos mágicos da escrita entre os nativos? Podia ser minha autobiografia isso. Adorei o título: é seco, não é espirituoso, não tem um sintagma supostamente poético ao qual se segue o subtítulo que o deve explicar. Deve ser bom mesmo. Comprei e esperei chegar. Tres, quatro, cinco meses.

Nunca chegou e, como é de praxe com a Amazon, reclamei, meu dinheiro de volta, nenhuma questão foi perguntada, continuamos em bons termos. Mas há, claro, uma frustração e, se eu já queria ler o livro, agora queria mais.

Em Março de 2012, então, comprei outro exemplar. E, claro, sendo essa a motivação de anomalia para este texto, não chegou. Tres, quatro meses: não chegará, creio. Já reclamei, meu dinheiro de volta, etc

Algum carteiro estará por aí interessado em Salasaca, um povoadinho no centro – imagine isso: no centro – do Equador?

Dois livros iguais perdidos – onde?

Um deles foi para El Salvador ao invés.

Um foi achado por alguém e o outro, bem, esse.

Diário Argentino 2.0

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 30, 2010

Quando estava em Buenos Aires, no ano-novo de 2009, pensei em como a vida passa rápido: uma sirene de polícia, o barulho dos fogos na meia-noite, o ruído vivo de uma cidade em comoção. Corpos ardentes que não são meus, muito inebriados, celebrando o arbitrário, o vão, o viver. Va bene, penso com meus botões, e vou caminhando pela Corrientes tranquilo e esperançoso. Chega de ser adversário.

Aqui, em Buenos Aires, teria uma vida de poucos e bons pertences: os livros me enriqueceriam, e seria amigo dos livreiros da Gandhi e da Hernandez. Andaria por aí com meu Cinquecento, que estaria velhinho, mas seria útil, não me daria trabalho e seria preservado sem frescura mas com amor: já nos vejo, eu e minha mulher, entrando no carro de manhã, aquele gesto único de baixar o banco e jogar lá atrás a bolsa, aquele desleixo do hábito e da segurança. Teríamos poucas coisas, mas a vida seria mais leve, dias de afazeres e despretensiosa sabedoria, dias de poucos planos, um homem e uma mulher que estão mais ou menos cagando pras certezas. Além disso, haveria a literatura e a política como assunto perene de queixas e opróbios.

Estamos em Buenos Aires, e agorinha mesmo estava levando o lixo para fora: fechei o saco na cestinha, caiu um pouquinho de pó de café fora, fechei o saco direitinho, fui lá fora, voltei, fechei a porta, e depois fui pegar a pá e um pano pra limpar a sujeira e sacudir o pó no saco de lixo novo que coloquei na cesta, e essa é a vida. Era sábado de manhã, acordei cedo, fiz chá, estava ouvindo Another green world. Viveríamos bem em Buenos Aires, teríamos vivido como nobres no exílio, discretos e voluntariosos com nossos desejos miúdos.

Meus amigos lembram da época em que eu era o Rei da Noite com alegria: graciosos com minha memória inadequada, me elogiam, são bons. Não há porque culpar nem a época nem os outros por nossos equívocos: abracei meus equívocos com a alegria que César Aira teve quando reencontrou seu cachorro perdido, quando ele tinha dez anos, em Pringles. Um cachorro perdido, um encontro, um garoto feliz, e a música preciosa dos acidentes perfeitos que acontecem o tempo todo em Buenos Aires ou em qualquer lugar.

Dia de Beckett

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 28, 2010

Um dia como esse hoje, tarde magnífica, fui levar a cachorra pra passear e dei graças a deus de não ser hikikomori.

Fui comprar o jornal, não tinha Estadão, mas tinha O Globo. A alegria ocorreu, mas como sói ocorrer, durou pouco: o Prosa e Verso cantava loas à pseudo-majestade Ferreira Gullar, poeta laureado, esteta ressentido, fruidor de arte ortodoxo, ex-comunista, anti-petista, abusivo, monótono, chato – mas celebrado que só. Pouco antes de sair de Belo Horizonte, lembro de assistir a uma palestra dele: foi ovacionado às custas da rudeza arrogante com que tratou Duchamp e arte conceitual – isso foi perto do lamentável incidente dele contra a Laura Vinci. Foi ovacionado: devia estar empoderado, o velhinho, deve ter saído do salão de conferências do Palácio das Artes se sentindo centroavante na vida, se sentindo muito mais e melhor que o pífio reaça que estava sendo. Triste destino o de envelhecer acreditando-se um exército de um homem só – triste envelhecer numa metáfora bélica. Bom, que seja: triste para mim. Vai saber o que o outro celebra em si.

Na praia, as barracas no chão, uma imagem que nunca tinha visto antes, o dia magnífico, lindo mesmo, a enseadinha mansa, umas crianças, um casal de gringos. Uma senhora cheia e sorridente, parecendo Aunt Jemima, se aproveitou do vazio e levou um isopor pra vender cerveja. Quando tinha treze, catorze anos vinha aqui de ônibus, passava o domingo na praia, seminu e, que me conste, sem dinheiro nenhum.

Minha cachorra, tão adorável, o fim de tarde e, no mar, a linha do horizonte mais escura, tudo azul, nenhuma nuvem. Como não lembrar de Beckett num dia assim? Pois consta que um dia Beckett estava caminhando com Paul Léon, estão nos Champs Elysées, digamos que estão indo tomar uma, e a tarde está exuberante – como essa de hoje. Léon puxa conversa, dizendo Dia lindo, hein, Sam? E Beckett olha ao redor, como se até então estivesse distraído da circunstância, e confirma o valor de verdade da afirmação de Léon dizendo É mesmo, lindo mesmo. E então Léon – em um movimento no qual me reconheço, com o qual me identifico, que poderia ter sido meu – se empolga e diz Pois é – num dia assim você se sente feliz por estar vivo! E Beckett – em um movimento admirável, no qual reconheço a pessoa que eu desejaria ser mas nunca serei, que jeito – responde Ah, Paul, aí já não sei – eu não iria tão longe. E os dois se entreolham – e riem, são amigos, em alguns minutos beberão uma cerveja.


Academic Tour 2010

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 24, 2010

O curso, o simpósio, a jornada. As questões dos alunos, as conferências, os debates. O clima eventualmente falanstérico do simpósio, o igualitarismo, os bons modos, a atenção cuidadosa, a argúcia, a minúcia, o zelo, a modéstia. A alegria adventícia dos consórcios improváveis. O turismo acadêmico. Os desejos, o burburinho, o tédio, o cansaço.

O novo semestre, os alunos novos, os alunos velhos, os colegas de sempre, o mesmo prédio, o rotineiro, as expectativas cristalizadas, os desejos de mudança, os hábitos arraigados, o encanto da rotina, o massacre da rotina. O valor de verdade da crítica, a ficção como um problema, o caso Defoe, por uma nova poética do ensaio, crianças diante do mistério dos laços familiares.

Se perder em uma manhã qualquer, em uma rua de Buenos Aires. Ser de novo jovem, cheio de riscos a correr. Reencontrar-se com seus heróis, seus homens de papel, sua vida romanesca, seus agasalhos tardios, seus trinta anos. Ser de novo um leitor, um candidato a algo, menos melancólico, um figurante em um filme da nouvelle vague, um amigo do Autor, um crítico literário, um professor e, num dia de inverno, diante da porta, hesitar um pouco, não por receio, mas pelo prazer da delonga e do tempo sem custo.

Opoyaz, ganha-pão

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on junho 2, 2010

Eis que Kelvin aparece com mais dois posts muito bons, aqui e aqui. Ele está falando de coisas em meu terreno – que é também, em certa medida, o dele. Em que pesem todas as diferenças geracionais e estilísticas, ler, falar e escrever sobre Saer, Piglia, e mesmo Aira é parte do que põe o pão na mesa pra nós dois – nós dois participamos dessa fortuna.

Falei pra um amigo outro dia, Esses blogs são minha Opoyaz. Claro: uma Opoyaz ralé, pós-pós-tudo, cheia de Pro-Ams, sem tanta solidificação quanto sua matriz e inspiradora involuntária, sem manifesto, provavelmente mais apta a acolher diferença e vacilação que a versão anterior, privada de gênios. Mas é um coletivo que mantém uma rotina de conversações e barganhas que nutre as produções de cada um; com sua particularidade faz uma coisa que, independente de qualquer telos desejado ou projetado, é vida literária no século XXI.

Por exemplo: há alguns dias, o assim-chamado Andreis Passarinho publicou em seu blog uma análise sinóptica do trabalho de Bernardo Carvalho. É um post de umas mil palavras, mais de seis mil caracteres: é bem mais do que tenho quando escrevo pro jornal. Salvo engano, aí está ele a usar seu blog para fazer um negócio que, na falta de melhor palavra, é crítica literária. Observem que o crítico anota a obra, se posiciona, exibe o comentário na esfera pública – se isso ainda não é crítica, não sei o que é, e vou me poupar de brandir Terry Eagleton por hora.

Postei em uma comunidade do Orkut que modero um comentário sobre o texto do Andreis; disse:

Eu concordo e discordo ao mesmo tempo com quase tudo! O básico é que os aspectos que o crítico usa para malhar são para mim sinal de excelência: acho que BC se esforçou bastante para produzir dois grandes livros – o Nove Noites e o Sol se põe em São Paulo – e agora está iniciando um outro negócio, que vamos ver no que vai dar.

Eu teria, terei muito mais a falar sobre BC – como vcs ja sabem. Já escrevi sobre o cara, e não tenho problema em dizer que o “estudo”, que o que ele faz é incorporado por mim a parte de meu trabalho tb. Mas, antes de meter minha colher, queria ver o que vcs acham do post aí. O que vcs acham?

E, em questão de horas, li que o Diego Giesel pensava que

AM, quando o Andreis falou sobre o Vida modo de usar eu pensei a mesma coisa. Concordo e discordo.

E que o Refrator de Curvelo, por sua vez, achava que

Não. Eu tendo a concordar. Estou mesmo incomodado com as coisas que o Andreis escreveu. E não se enganem. Defendi, com relativo sucesso, nosso Bernardo Carvalho em algumas situações e tenho o sujeito como um baita artesão de letras que, inclusive, me causa inveja. É bom ter por aí alguém que sabe o que está fazendo. Mas falta algo.

Não gosto, contudo, de pensar que a responsabilidade do que falta é do Bernardo Carvalho. Esta é uma perspectiva crítica desmobilizadora, e muito cínica. Falta que os sujeitos que tenha coragem para errar consigam fazer isso com competência, e não com a cara cheia de pó ou coisa parecida. Que BC é um engenheiro, isso é. Que faz transplantes narrativos (coisa que o Andrei não fala, mas me salta aos olhos; é fácil encontrar Perec em “Teatro”; Bernhard em “As iniciais”; Chatwin em “Nove noites” – e encontrar eu digo encontrar, mesmo, como se fosse para tomar um chazinho ou encher a cara), também está lá. E faz bem, com maestria. O que está faltando é o resto que Bernardo Carvalho não é. Inclusive, ele não é outras pessoas. E isso, hoje, não temos. Outras pessoas.

C´est ça.

E já o Leandro disse

Eu também concordo e discordo ao mesmo tempo com quase tudo. Nove Noites e O Filho da Mãe são dois grandes livros. AM, acho que o O Sol se põe… tem um grande defeito, de inserir uma personagem que não tem nenhuma utilidade (a irmã do protagonista no Japão). O defeito que ele vê, de alguém que trabalha sempre com as mesmas peças, pra mim é uma grande qualidade. Algo failbettter.

Há outras contribuições, mas vou abdicar de arrolar todas aqui. Agora me diga você a que vem interditar essa conversa do status de crítica. Vá lá que não é Teoria, não se trata disso  mas há, aqui, especulação e empenho da atenção no tratamento da “matéria literária”. Claro: o estado é de embrião, e precisa de mais tempo e condições para acontecer, e só eventualmente se transforma, e sai dessa coisa mais dispersa e ligeira para virar outra coisa, coagulada em um comentário mais recheado de argumentos e com a devida arrecadação de evidências e desfile de justificativas. Observe que nesses comentarinhos, que seus autores escreveram provavelmente entre uma obrigação e outra, no meio de um dia ordinário, ou se refastelando numa procastinação comezinha e culpadinha, como é por exemplo do meu feitio, há, principalmente, leitura, e conversação sobre a leitura – e sem esses dois ingredientes, nosso ganha-pão cai por terra fácil.

Esse ganha-pão é difícil, mas também bom. Pode ser executado com retidão, e pode ser feito de maneira escrotinha. Pode se beneficiar muito de uma certa obnubilação – que, se vampirizada com destreza, garantirá ao picareta um modus vivendi relativamente folgado e privilegiado, com pouca chance de desmascaramento público – e é sempre bom lembrar que a casa também faz às vezes de asilo de dementes, de inviáveis alhures que aqui encontram abrigo. Esse ganha-pão pode, enfim, trazer uma alegria no processo, um esquecimento eventual do produto que se liga a recuperações infantis, a curiosidades atiçadas ad eternum, e distribui epifanias no ordinário; mas pode ser uma faina frustrante e amarga também, uma litania do ganho pouco, do me falta, etc.  É ainda possível que, como diz Bloom, esse negócio esteja agora em sua condição crepuscular. Mas, claro, ainda não: não viveremos pra ver isso.

Opoyaz on the beach

Martel, Marx

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 12, 2010

Não é curioso? Assistindo hoje a O Pântano, de Lucrecia Martel, com meus alunos – e era a segunda vez que assistia, a primeira foi logo quando o filme apareceu, em 2001 ou 2002 – observei que o filme parece inverter a máxima marxista que reza que a História primeiro acontece como tragédia, depois como farsa. Observe que a consumição de Luchi – imolado no quintal em uma morte besta que provavelmente teve como causa primeira, além da infância e sua implacável curiosidade, o rato-do-banhado – é primeiro encenada enquanto jogo no mesmo local. Portanto, primeiro a farsa, a ficção, e depois a tragédia.

Podemos também argumentar que a fonte da morte no filme é mesmo a ficção: é a narrativa sobre o rato-do-banhado que engendra o medo que consome Luchi e o medo que o consome é que o leva à morte. A tese para mim é má, pois ofende a ficção, tornando-a fonte do mal – e eu quero que ela seja a fonte da salvação, pois nisso acredito. Mas também acredito que há de ser melhor para a ficção que ela seja má e boa, parêntese da tragédia e tragédia ela também. Estamos falando, afinal, de um filme que em uma das cenas nos mostra um menino caolho, no meio do mato, com uma espingarda apoiada no ombro, tentando insistentemente encontrar alguma coisa no cu de um cachorro.  Um filme no qual os diálogos são puro DeLillo, onde os personagens falam a maior parte do tempo apesar dos outros, e só eventualmente uns com os outros. Um filme que celebra em um passeio na represa, que junta índios e brancos em um breve interlúdio de festividade comum, uma espécie de paraíso friável e fudido. É um momento mínimo, quase invisível, muito volátil – e magnífico.

Primeiro de Maio

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 3, 2010

1. Fato: Quase um mês sem um post. Mas sem desculpas: há mil e uma maneiras de fazer anotações, e esta é apenas uma delas.

1.2. Razão: Boa parte do tempo assim-chamado livre foi dispendido frequentando o excelente blog que, aliás, estava lá, na última nota que escrevi aqui. Por conta da folia em torno do texto da Flora Süssekind, terminei lendo blog pra chuchu esses dias. Mas, claro, houve mais, muito mais: aulas e correção de trabalhos, como sempre; um evento protagonizado por um grupo com o qual trabalho, que aconteceu com sucesso, embora eu estivesse um pouco abatido durante toda a semana, com um mal-estar indefinido, uma espécie de gripe encruada que foi forte o suficiente para me impedir de ir à natação (!); resenhas para O Globo: já saiu a do poeira: demônios e maldições, do Nelson de Oliveira e por sair estão as do Doutor Pasavento, do Vila-Matas e a do Verão, do Coetzee.

1.2.1 Fato peculiar: O AX escreveu resenhas em paralelo às minhas para os livros do Vila-Matas e do Coetzee – por email, comentamos a coincidência, e fiquei pensando se isso dizia algo sobre as características desse trabalho no Brasil hoje. Mas logo me censurei por estar querendo extrair sentido disso também. Por que isso deveria ter algo a dizer?, pensei. Tem coisas que só acontecem, não tem de ser instâncias de outra coisa – embora, claro, sempre possam ser outra coisa também, como aliás a literatura é pródiga em mostrar.

2. Leituras: Além dos livros mencionados e mais um outro, que comentarei aqui depois (é este aqui), li várias coisas em torno de biografia para o ensaio que estou preparando para o JALLA; o mais digno de nota foi um artigo de Hibbard, “Biographer and subject: a tale of two narratives”: excelente, casos bem costurados, pouca conclusão e até, diria um leitor com má vontade, pouco “aprofundamento” – mas bom justamente por isso, porque abdica de dizer tudo, porque esboça o problema, esclarece as vias de ataque selecionadas pelo autor, e sai de cena – fica o leitor, com seus problemas. Bom, isso é bom.

2.1 “Bom”: Um post futuro reclama ser escrito sobre a criteriologia ordinária que me leva a dizer que, por exemplo, o artigo de Hibbard é “bom”. Ano passado escrevi sobre isso, depois apresentei outro trabalho numa mesa sobre isso – é o bendito tema do valor literário, mais uma vez aparecendo para me assombrar. Outro dia estava relendo esse texto do Jaime Ginzburg e pensando no quanto me custaria produzir uma réplica mais consequente do que as anotações que já fiz a respeito do artigo dele aqui e ali. Há algo no tema que me estimula, em parte acidente de formação (minha relação com BHS, por exemplo, que não é nada trivial no que diz respeito a esse assunto), em parte por saber que o debate é sempre quente nesse setor, e potencialmente infinito – e isso me deixa com vontade de dizer algo a respeito, de participar da conversação. Bom, isso é bom – pra mim.

3. Romance de formação: No telefone, minha irmã comentou Como é que você bota no seu blog um post de Romance de Formação com três discos e nem menciona o LC? Eu poderia ter me desculpado dizendo a verdade – que o referido post foi pensado como o primeiro de uma série, todos com aquela mesma característica, discos e uma historinha pessoal. Mas, ao invés disso, senti vergonha, como se eu tivesse feito, inadvertidamente, uma coisa má para um amigo – uma coisa que em mim teria sido só um certo descaso, mas no amigo teria causado tristeza e sofrimento. Então vim remediar o mal e fazer aparecer aqui o Durutti Column, LC, comprado na Mesbla, em 1986.



Don Jorgito, Roberto Bolaño & Cia

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on março 26, 2010

Lembro de uma vez conversar com um amigo classicista que já era professor  na época em que eu era ainda um pseudocandidato ao posto; é um amigo querido com quem há muitos anos não converso, ele foi morar em Estraburgo, eu fui pros Estados Unidos, eu me casei e me separei, ele também – enfim, a vida deu uma daquelas torcidas que terminam convidando o afastamento a não ser que a gente resista à manifestação da lei da entropia nas relações humanas.

Um dia ele me disse como gostava desse trabalho, como era bom lidar com gente jovem, e como era boa a mudança dos semestres, como era bom ver as pessoas aparecendo na graduação, demonstrando interesse por alguma coisa e avançando, e aparecendo no mestrado, e caminhando na vida, e construindo alguma coisa nesse negócio que a gente chama de vida acadêmica.

Ele, claro, dourou a pílula, mas era uma percepção genuína. Lembrei dele hoje: estava exausto, e eram apenas dez e meia da manhã. Você vê um professor universitário em início de carreira e não faz idéia da carga de trabalho envolvida no negócio. Há, claro, pares lenientes, atire a primeira pedra quem não os tem, que fazem da estabilidade e dos acolchoados ligados ao espírito da guilda a infâmia do ofício. Mas há  muito mais que isso – ou você achava que se resumia a isso, e que estava coberto de razão quando demonizava a academia inteira? – e, no meio das mil coisas que fazem esse ganha pão, há muito que nutre o interesse, multiplica o empenho, mantém a atenção presente e estimula o desejo de elevar e honrar o ofício.

Assim, hoje, quando no meio de meus afazeres lá com o Túlio, o Juan bateu na porta e nos interrompeu para me dar um pacote de Jorgito, lamentei não ter tempo de dar atenção a ele, lamentei quanto tempo faz que não conversamos.  Mas não lamentei fazer as coisas que fiz pra que um dia eu tivesse sido professor do Juan e, por acaso, no intervalo de uma das aulas, na época em que eu ainda fumava, tivéssemos fumado juntos no corredor, e falado de Aira e de Adán Buenosayres, que dali a uns anos ele me daria de presente naquela edição linda da Archivos, e aquela vez em que falamos de outras coisas da vida e eu disse pra ele que precisava parar de fumar, e nos perguntamos se César Aira fumava, Saer com certeza fumava e não era pouco, e você não acha que Saer se refletia mesmo era em Tomatis, tipo fazia daquele personagem em particular seu alter ego? Não?  E, com essas coisas todas na cabeça, terminei desistindo do post que planejei fazer hoje, no qual falaria do chute no saco que são as resenhas de Bolaño nas quais ele enche a bola de todo mundo, mas especialmente a dos amigos dele, que grande aborrecimento ver aquela ladainha de loas, aquele desfile de magníficos, ninguém que jamais tenha levado porrada, e falaria também de um texto sobre o valor do não na crítica que li hoje ligando isso à prática de Bolaño como comentador de literatura, e de alguma maneira ia enfiar também aquele incidente grotesco de quando Bolaño já autor celebrado foi ao Chile e depois saiu escrevendo textos nos quais jogava todo mundo que encontrou na fogueira, uma vingança verbal tardia que termina sendo uma espécie de homenagem aos escrotos, e talvez falasse sobre aquele texto que planejo há tanto tempo, sobre a articulação entre escrotos e fudidos na poética de Bolaño e, claro, em algum momento comentaria também sobre o bruto labor que às vezes é produzir um comentário sobre um livro para, no final, pensar em Bolaño passeando na praia, um pouco cansado, está meio abatido, cumprimenta uma senhora sua vizinha, dia de muito trabalho no livro, saiu do escritório e foi dar um passeio na praia, a marina cheia de barcos, e ele vê os barcos soçobrando um pouquinho e se pergunta se isso está certo, se você julga que isso está certo, se você acha que a vida é assim mesmo do jeito que você pensa que é.