ensaio

Post à maneira do Kelvin

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on setembro 17, 2010

Consta que Schklovsky nomeou um de seus textos autobiográficos de As Três Fábricas como um comentário à natureza de pura reprodução da família, da escola, e do partido. Máquinas produzindo peças que irão incrementar a máquina para produzir peças que irão incrementar a máquina para produzir peças. Posso imaginar Schklovsky concebendo o título e achando bom, achando graça, achando que era um título apropriado.  Na segunda parte de seu Uma viagem sentimental, cujo sugestivo título é “Escrivaninha”, Schklovsky conta como um marinheiro grego foi capturado em ação e, na sequência, interrogado por um cara da polícia secreta soviética: a certa altura, há uma injeção de cânfora, mas mesmo assim o homem nada diz. Embora não diga de onde vem tal convicção, Schklovsky está certo de que os dois, interrogante e interrogado, se conhecem, se conheciam anteriormente. No dia seguinte, com o prisioneiro morto, os outros soldados se dedicam a explorar e cutucar seu enorme corpo, buscando evidência do perecimento necessário da carne, talvez, ou confirmação da realidade do custo da fibra moral e do silêncio.  Então, em uma sentença excepcional e enigmática, Schklovsky diz A música divina dessa cadeia infeliz caminha incólume aqui.

Ouvi dizer também, de um professor que tive na graduação, um velho comunista com sua respectiva escara de batalha, um andar claudicante e uma bengala, que Victor Serge ficou que nem uma nau à deriva por um tempo, e isso não apenas simbolicamente, mas de fato: era passageiro de um navio de cruzeiro, e sua condição de deportado da França fez com que vários países recusassem sua entrada. Martinica, Cuba, República Dominicana, todos disseram não ao velho comunista (no Haiti ele nem tentou entrar, pois não era estúpido). E eis que enfim o México abre os braços para Serge, que lá sobrevive mais uns anos – poucos, mas o suficiente para escrever O Caso Tulayev. Vivia, sabemos, em grande pobreza, mas pode alguém ser demasiado pobre no México? O que é um terno puído na Calle Tenochtitlán em uma manhã de sábado ensolarada e seca, o que é sua jornada única numa cidade de tantos milhões? Poeira das ruas ele mesmo, Serge era um comunista perdido no México, que o abrigou e nutriu sua maior obra.

Não espanta, portanto, que um pária maior, este homem que elevou a condição de sem-teto à categoria de Arte Pura, Roberto Bolaño, tenha encontrado no México um lugar não só para si, mas também para sua ficção eivada de filhosdaputa, fodidos, perdidos, ópera bufa da ruína, tendo sido ele mesmo espalhado pela América Latina com as honras de um periquito nu, tendo eternamente a si e pouco mais como argumento final. Amalfitano, com seu livro de geometria lançado à intempérie, com sua tese sobre intelectuais latino-americanos, com seu delírio manso diante dos alunos e com o próprio Ocidente indo às migalhas em seus diagramas, é um poeta da impossibilidade do Ocidente, um canto de cisne que poderia ter sido previsto por Benjamin. Está dizendo Aqui, não, enquanto seca ao sol um livro de geometria, que confina os rituais de uma ficção mais antiga e mais longeva que as tramas baratas dos livros que Arturo Belano lia sob o chuveiro em seu périplo burro e triste. Mas, sabemos, a miséria e a morte estão à espreita, e a voz mansa que fala a Amalfitano bem podia lhe dizer A música divina dessa cadeia infeliz caminha incólume aqui.

Bovarismo, 2666

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 24, 2010

Como é do conhecimento de vocês, a questão do Bovarismo me interessa; creio que é uma espécie de consequencia fatal da leitura de ficção, um efeito colateral incontornável e, talvez, um elemento necessário na produção do desejo de ficção – seja de sua leitura, seja de sua produção. Há anos faço anotações sobre isso, partindo de uma observação inicial de Piglia, que em um texto conhecido alude ao célebre abraço no cavalo de Nietzsche em Turim como uma instância de bovarismo. Venho compilando eventos, incidentes, observações e citações ligadas ao tema – venho ensaiando escrever um ensaio que redescreva e recupere o termo, colocando-o, na circulação conceitual sobre ficção contemporânea, como parceiro de noções como “pastiche” e “auto-ficção”. A coisa, afinal, é simples, e parece útil justamente por isso: lemos e, tendo lido, balizamos nosso contato com a suposta realidade de maneira diferente – eventualmente, nos esforçamos para produzir conexões entre o lido e o feito; eventualmente testemunhamos essas conexões sem que nossa agência tenha sido necessária para produzi-las.

Há o clichê Uma imagem vale mais do que mil palavras etc. Obviamente, considerando minha amizade com as palavras, me disponho a discordar, a César o que é de César, uma imagem diz umas coisas, um texto diz outras, um beijo não anula o outro, e a camaradagem continua. Eis, portanto, a inacreditável imagem:

Na praia com Sylvia Plath

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 21, 2010

1. Sloterdjik/ Zizek. Um dia fui numa conferência do Zizek. Uma anomalia: um domingo ensolarado, um centro de cultura alemã, Zizek com duas rodelas imensas de suor debaixo do sovaco de uma camisa com um desenho do Mickey. Todavia, como às vezes acontece, é na morada do bizarro que encontramos a companhia amiga que mais nos é cara. Pois a meio caminho de sua exuberante e careta superinterpretação de They Live, de John Carpenter, Zizek vai e menciona mais ou menos o seguinte:

O Ocidente projeta uma imagem de si mesmo como sendo fundado na necessidade de compreender o Outro. Ora, talvez a proposta de Sloterdjik seja bem mais próxima do que é o caso. Sloterdjik diz que progresso social é criar mais e melhores condições para ignorar o Outro. Compreender dá muito trabalho, e mesmo a performance da compreensão, que ocupa tantas vezes o lugar da própria coisa, dá muito trabalho. Não quero compreender meu vizinho: quero poder ignorá-lo, e ser ignorado por ele.

Há algo duro e cínico aí, e a extensão indiscriminada desse ethos me envergonharia – claro, sou um velho nerd pós-humanista, mal e porcamente informado sobre o contemporâneo. Mas volta e meia penso nisso, nos usos disso. E em particular, penso nisso quando estou nadando. Hoje de manhã mesmo: um dia sombrio, gelado, daqui da janela nuvens carregadas. Chuva, talvez; mais certo era um dia frio, um vento cortante aqui na descida da ladeira, aquelas lufadas vindas do mar que enchem o agasalho. Nem hesitei, nem me passou pela cabeça não ir. E fui. Lá na piscina estava só, junto com dez pessoas, que salvo a mais elementar polidez (“Bom dia”, “Tá usando a prancha?”) ignorei.

2. Utilidade Pública. Projeto inovador e arrojado do camarada DP, que aparece aqui para enlevo de todos.

3. Leituras de fim de semana. Como sempre, a ganância me domina. Mas deve ser algo que inclua a) Shklovsky, A sentimental journey: Memoirs, 1917-1922 ou b) The Letters of John Cheever ou c) Carola Saavedra, Paisagem com dromedário ou d) Margulies, Rites of realism. Além disso, posso garantir que, em algum momento do fim de semana pensarei em a) Henry James (O Mestre, Pessoal, O Mestre!) b) Bolaño (2666 tá na boca do povo, e tem até concurso de resenhas no site da editora!) c) Kelvin (amigo é pra essas coisas) e d) Sylvia Plath.

Como é do conhecimento de vocês, a grande anomalia nessa lista é a presença da famosa poeta suicida. Mas observem essa foto:  imaginem uma poesia de pouca morte, de nenhum desejo de morrer, como a que nós temos quando estamos felizes o suficiente para ir à praia, e uma pessoa querida quer uma foto nossa, e nem pensamos antes de sorrir para a câmera, para o sol, para o resto do dia, para o resto dos dias.

Time flies

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 14, 2010

Por incrível que pareça, um dia (um dia ordinário, qualquer, que nunca seria lembrado não fosse por isso) Marcelo Rota me disse (em Inglês, como se me dissesse Oh fuckTime flies like a blazing arrow, and people change, frase de grande impacto, que vivo reencontrando. Hoje de manhã, por exemplo, depois de uma reunião de departamento, a encontrei nesse post aqui da Rachel Cozer. Chegando em casa há pouco a reencontrei num comentário que a Myriam escreveu pro post que escrevi ontem. Estou lendo um livro que nada tem a ver com isso, ou pelo menos não de cara, mas então me lembro do Amalfitano, manso e melancólico, fico pensando se vai ser esse o meu destino amanhã ou depois. Oh fuck.

Don Jorgito, Roberto Bolaño & Cia

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on março 26, 2010

Lembro de uma vez conversar com um amigo classicista que já era professor  na época em que eu era ainda um pseudocandidato ao posto; é um amigo querido com quem há muitos anos não converso, ele foi morar em Estraburgo, eu fui pros Estados Unidos, eu me casei e me separei, ele também – enfim, a vida deu uma daquelas torcidas que terminam convidando o afastamento a não ser que a gente resista à manifestação da lei da entropia nas relações humanas.

Um dia ele me disse como gostava desse trabalho, como era bom lidar com gente jovem, e como era boa a mudança dos semestres, como era bom ver as pessoas aparecendo na graduação, demonstrando interesse por alguma coisa e avançando, e aparecendo no mestrado, e caminhando na vida, e construindo alguma coisa nesse negócio que a gente chama de vida acadêmica.

Ele, claro, dourou a pílula, mas era uma percepção genuína. Lembrei dele hoje: estava exausto, e eram apenas dez e meia da manhã. Você vê um professor universitário em início de carreira e não faz idéia da carga de trabalho envolvida no negócio. Há, claro, pares lenientes, atire a primeira pedra quem não os tem, que fazem da estabilidade e dos acolchoados ligados ao espírito da guilda a infâmia do ofício. Mas há  muito mais que isso – ou você achava que se resumia a isso, e que estava coberto de razão quando demonizava a academia inteira? – e, no meio das mil coisas que fazem esse ganha pão, há muito que nutre o interesse, multiplica o empenho, mantém a atenção presente e estimula o desejo de elevar e honrar o ofício.

Assim, hoje, quando no meio de meus afazeres lá com o Túlio, o Juan bateu na porta e nos interrompeu para me dar um pacote de Jorgito, lamentei não ter tempo de dar atenção a ele, lamentei quanto tempo faz que não conversamos.  Mas não lamentei fazer as coisas que fiz pra que um dia eu tivesse sido professor do Juan e, por acaso, no intervalo de uma das aulas, na época em que eu ainda fumava, tivéssemos fumado juntos no corredor, e falado de Aira e de Adán Buenosayres, que dali a uns anos ele me daria de presente naquela edição linda da Archivos, e aquela vez em que falamos de outras coisas da vida e eu disse pra ele que precisava parar de fumar, e nos perguntamos se César Aira fumava, Saer com certeza fumava e não era pouco, e você não acha que Saer se refletia mesmo era em Tomatis, tipo fazia daquele personagem em particular seu alter ego? Não?  E, com essas coisas todas na cabeça, terminei desistindo do post que planejei fazer hoje, no qual falaria do chute no saco que são as resenhas de Bolaño nas quais ele enche a bola de todo mundo, mas especialmente a dos amigos dele, que grande aborrecimento ver aquela ladainha de loas, aquele desfile de magníficos, ninguém que jamais tenha levado porrada, e falaria também de um texto sobre o valor do não na crítica que li hoje ligando isso à prática de Bolaño como comentador de literatura, e de alguma maneira ia enfiar também aquele incidente grotesco de quando Bolaño já autor celebrado foi ao Chile e depois saiu escrevendo textos nos quais jogava todo mundo que encontrou na fogueira, uma vingança verbal tardia que termina sendo uma espécie de homenagem aos escrotos, e talvez falasse sobre aquele texto que planejo há tanto tempo, sobre a articulação entre escrotos e fudidos na poética de Bolaño e, claro, em algum momento comentaria também sobre o bruto labor que às vezes é produzir um comentário sobre um livro para, no final, pensar em Bolaño passeando na praia, um pouco cansado, está meio abatido, cumprimenta uma senhora sua vizinha, dia de muito trabalho no livro, saiu do escritório e foi dar um passeio na praia, a marina cheia de barcos, e ele vê os barcos soçobrando um pouquinho e se pergunta se isso está certo, se você julga que isso está certo, se você acha que a vida é assim mesmo do jeito que você pensa que é.

O Matuto

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on março 24, 2010

1. A mulher está só, década de 30, no sertão do Mato Grosso: uma choupana, na verdade, onde devia esperar por umas horas, mas a noite chegou, e é aí que ela vai ficar. Sente, lá pelas tantas, a cólica, e sabe que o menino vai chegar, o que ocorre de fato por aquelas vias de aflição costumeiras da natureza mas que muitas vezes terminam em sucesso. Muito bem: essa termina em sucesso, o menino nasceu, chora, tudo bem.

Tudo bem? Obviamente isso é apenas a abertura. De onde vem a mulher? Quem é o pai da criança? Como chegaram ali? Quem esperavam? Continuarão esperando?  Nesse momento alguém se aproxima: quem é, o que está fazendo com as mãos, o que é aquele negócio que esse homem tem na mão? São cerca de onze horas da manhã: na Avenida Rio Branco os engravatados cumprem suas rotas e rotinas diárias, na Praça da Sé meu avô compra um bilhete de loteria, um homem rico acaba de nascer.

1.1 O texto acima foi produzido a partir do tema “O Matuto”, que me foi proposto por T: é uma homenagem ao circuito magnífico de NEODADA que é a peripécia do livro de Zíbia Gasparetto tal como descrita neste inacreditável verbete aqui.

1.2 Há tantos embaraços e desvios de rota nesse textinho da wikipédia: há uma estrutura geral de clichê, mas há também uma série de indicadores imprecisos, enigmáticos, que terminam por trair e subverter expectativas.

1.2.1 Isso, esse jogo com subversão de expectativas genéricas, é abundante em muita ficção contemporânea: Aira, imediatamente. É, todavia, igualmente abundante a falência desse projeto, que se torna por essa via um arremedo de ficção no qual a incompetência do Autor é travestida de transgressão de gênero. Trata-se de algo bastante rudimentar: há uma incompetência, o Autor não sabe escrever aquilo, propõe-se a executar algo e falha. Um violinista erra: notamos na hora, comentamos; um jogador de futebol fura: nunca passa sem menção. Mas, em literatura, isso produz todo tipo de complicações, passando desde culpa cristã até acusações gratuitas de má fé e criação de desafetos.

1.2.2 Essa situação tem algo de demoníaco para o Crítico, para o comentador de literatura. Caso insista em cobrar perícia técnica do Autor, há várias defesas imediatas à disposição: “Não entendeu o projeto”, “Quer fazer telepatia”, “Quer entender o livro melhor que o Autor” etc. O que resta é close reading – que está fora de moda, mas que é uma disciplina da atenção, e que tem um ethos.

2. Às vezes, quando tenho de comentar um livro, me pergunto, como Amalfitano, meu personagem favorito em 2666, se perguntava diante de seus alunos: Quem se engana? A certa altura da semana passada, afligido por uma leitura tão ruim que só foi concluída por imperativos morais ligados a meu entendimento do conceito de “trabalho”, lembrei de uma das imagens favoritas do Kelvin, o livro de geometria que Amalfitano pendura na corda para que ele aprenda algo com a intempérie. Enquanto alguém está comendo ou abrindo uma janela ou somente andando ao léu, aqui estou eu às voltas com esse livro ruim, pensei. A vida é curta. Quem se engana?