ensaio

Um problema

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on setembro 17, 2014

Andei pensando no seguinte problema:

Quando estou considerando narrativas habituais, tenho um pacote de categorias que aplico para sua descrição e análise. Um exemplo, aqui. A narrativa, e as categorias que utilizamos para lidar com elas, são criaturas do hábito, tradicionais, conhecidas.

Quando estou considerando narrativas excepcionais, extraordinárias: o que é que eu faço?

Eu tenho um problema.

Vejam aqui, por exemplo, o que George Saunders faz para comentar Daniil Kharms: vejam o comentarista se atribulando. A certa altura, ele diz: No processo de martelar um prego, Kharms faz evaporar seu próprio martelo.

Isso, aqui, está como crítica, e é certo que esteja: é comentário de literatura, e além do mais feito num jornal, para informar mas também para vender livro que acabou de ser lançado.

Mas o negócio também tem uma outra vida, que não é a vida vicária que via de regra atribuímos à crítica. A doideira de Kharms provoca um negócio na doideira de Saunders: rua de mão única, um vem ao encontro do outro, rola um aperto de mãos aí.

kharms

 

Em Março de

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on março 4, 2013

Em Março de 2013 saiu uma resenha minha, um comentário sobre um livro do Bolaño, As Agruras do Verdadeiro Tira.

Quando comecei a fazer resenhas com seriedade, em 2003, 2004, tinha como certo que, com o tempo, a coisa ficaria mais fácil. É uma habilidade como qualquer outra, escrever, você aprende com a prática: habitua e treina a mão, reduz o sistema de decisões raciocinadas, automatiza procedimentos. “Vai ficando mais fácil com o tempo”, eu pensava, e via o quanto ainda tinha de editar as minhas anotações para chegar às mil e duzentas palavras, ou equivalente: qualquer que fosse o limite, era um problema.

E, de fato, como dizer que não ficou mais fácil? Anos fazendo a coisa, claro que ficou. Mas essa coisa – como, imagino, qualquer outra associada à literatura – gera suas próprias dificuldades à medida que se encaminha, exsuda uns obstáculos filhosdaputa.

Essa resenha, por exemplo, do Bolaño: li boa parte desse livro na Argentina, quando fui lá em 2011, para um evento sobre Saer. O livro tinha acabado de sair, estava em todas as livrarias, não resisti. Li o abominável prefácio cometido pelo Masoliver Ródenas naquele jardinzinho ao redor da Biblioteca Nacional num dia gelado, depois do almoço: lembro de pensar “Porra, mas que merda esse prólogo, que coisa mais cu” e pensamentos afins, irritado com o imperativo de explicação literária prévia e defesa dos interesses dos que sobrevivem ao Autor. Lembro de comentar o livro com F, que adorou; alguma coisa deve ter aparecido também em minha conversa com o K, em alguma conversa com o K. Essas memórias de leitura não sei como entram na economia da resenha, mas sei que entram, pois tudo isso é combustível, é nutriente para o que se há de fazer no comentário.

Folheei a prova que a editora me enviou, mas o que me serviu mesmo foi o meu original, os velhos grifos, e uma marginália miúda, mas assertiva: eu parti dessas coisas para fazer a resenha e, uma vez que decidi concentrar o texto em Amalfitano, fazer o texto gravitar em torno de Amalfitano, ficou fácil: eu já tinha anotações pra dez resenhas com esse tema. Algumas decisões fundamentais já tomadas (seria necessário comentar algo sobre os gerentes do espólio; a direção seria aprobatória; Amalfitano é um bravo; etc), a coisa se faz sem muito titubeio. “Pronto”, pensei – e me aliviei, pois estava no prazo, o que era muito importante (sempre é: isto também é um negócio, e o prazo é parte do jogo “negócio”), e o resultado era honesto e, na medida do possível, bom.

“Mas será que não dá pra melhorar? Ainda dá tempo.” Ora, claro que dá – e lá fui eu, então, tentar melhorar a resenha; nesse caso, implicou basicamente em elidir, comprimir, reduzir. O que resultou, enfim, nisso:

 

Consta que uma das maiores preocupações de Bolaño em seus últimos dias era garantir o sustento de sua família após sua morte. Preocupou-se à toa. Com a fartura de sucesso que já marcava a recepção de sua obra quando ainda estava vivo e que só se multiplicou – a recepção de seu trabalho está robusta como nunca – e com a notável astúcia gerencial dos administradores de seu espólio literário, recursos não hão de faltar para a sobrevivência de seus dependentes. É pela combinação do sucesso de crítica da obra com o trabalho desses gestores que podemos ter acesso a este As agruras do verdadeiro tira, e isso merece menção por estar associado a uma característica marcante desse livro: seu caráter de esboço, material de trabalho, papéis em processo de uso e elaboração pelo autor, que lembra um ensaio de jazz, de cujos improvisos os músicos vão retirar material para suas composições definitivas.

Inúmeros temas e personagens presentes em outros textos aparecem aqui, e a leitura, para aqueles que já passaram por outros trabalhos de Bolaño, oferecerá a graça adicional do reconhecimento desses trechos, da observação de semelhanças e diferenças entre o que está aqui e o que foi publicado antes em outro lugar. Esse jogo encanta: nos momentos de pura reprodução parece que estamos verificando nossa expertise como leitores, medindo a familiaridade com sua obra pela extensão de nossa capacidade de reconhecimento. Se as semelhanças são notáveis, há também refrações curiosas e surpresas – em particular na maneira como os dois protagonistas, Amalfitano e Arcimboldi (sem o “h”) se articulam no livro, invertendo a ordem de prioridades aparente em 2666.

Redescrito e apresentado sob uma luz trágica algo distinta da que inferimos de sua vida em 2666, Amalfitano é aqui um personagem movido pela descoberta algo tardia, algo casual, de sua homossexualidade, descoberta transformada em escândalo pelo fato de que o alvo de seu desejo é um de seus alunos, um poeta de vinte um anos, Padilla, coisa que o pudibundismo do mundo universitário espanhol não pode tolerar e que motiva sua expulsão da universidade e sua migração para o México. A relação entre os dois constitui o núcleo dramático mais produtivo, e é circundada por todos os demais personagens, com seus dramas particulares: a filha de Amalfitano, Rosa, que vive as dificuldades do deslocamento de Barcelona para o México e da descoberta da homossexualidade do pai; os personagens de Sonora, como Pancho Monje, e os gêmeos Pedro e Pablo, um policial e o outro, acadêmico; o escritor francês J. M. G. Arcimboldi, que tem várias obras descritas e comentadas, teve um de seus livros traduzidos por Amalfitano, e cuja biografia é esboçada em esquetes, a partir de listas de seus amigos, inimigos, e com quem se correspondia. Todos têm seu lugar, e contribuem para o que há de trama aqui – mas esse lugar está situado à periferia do drama do professor de filosofia que se descobre homossexual aos cinquenta anos. Se há um problema e uma investigação aqui – algo que somos levados a crer necessário, dado o título do livro –, consiste em compreender as agruras de Amalfitano, suas negociações consigo mesmo, com os que lhe são próximos e com suas novas circunstâncias.

Ao longo da correspondência que trocam quando já estão distanciados, Padilla comenta com Amalfitano um projeto de romance que ambiciona escrever, O deus dos homossexuais, “o deus dos mendigos, o deus que dorme no chão, nas portas do metrô, o deus dos insones, o deus dos que sempre perderam”.Essas alusões parecem retratar o Grande Romance ambicionado por Bolaño por muito tempo, que encontrou aqui nesse Agruras seu espaço de exercício e experimentação. Com isso, por mais que o que tenhamos aqui seja também algo produzido por mãos alheias ao autor – a viúva e os editores, que decidiram publicar da forma em que está – trata-se de um livro capaz de generosidade suficiente para contemplar o que há de enigmático nas experiências do mais ínfimo e esquecido dos humanos, capaz de acolher o perdedor, o estranho e o fodido no mesmo gesto em que acolhe intensas perplexidades, sofisticadas produções culturais, guerras, convulsões sociais. Tal ambição, que se espalhou por toda sua obra, é admirável, mas a grande raridade é sua realização feliz em literatura, que merece destaque onde quer que se manifeste.

 

É melhor? Se é, de fato, melhor, devo ser capaz de colocar o dedo em cima da melhora e dizer “Aqui, veja: isso estava tosco antes, agora está melhor”. “Antes estava turvo, agora está claro”. “Antes estava obtuso, agora está incisivo”. E assim por diante nessa oposições.  E, se não consigo fazer isso, se não tenho esse tipo de clareza, como posso pensar que está melhor? É como na história de Nabokov: se você não sabe o nome daquela árvore, desista de ser escritor. Ou quase isso.

O fato é que quando meus amigos F, K, R, O e M elogiaram a resenha, destacaram todos como núcleo de interesse e evidência do valor da resenha, de seu acerto como comentário a esse livro, um mesmo trecho – que eu sem hesitar retirei, e que sobreviveu na resenha publicada por obra e graça do meu editor.

Crítica literária 2.0

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on setembro 3, 2010

Costuma se sentir afortunado, e isso por inúmeras razões, uma delas sendo inclusive porque a disposição da sorte como um fator operativo no processo bloqueia uma sequencia causal mais estrita, reducionista e rudimentar, que colocaria no centro do palco noções de competência e excelência, e isso não seria bom para ninguém.

Em particular no que diz respeito à literatura, a fortuna efetivamente lhe sorriu, pois não sabe como seria viver disso. Poderia, claro, ser jornalista e trabalhar com literatura, tem amigos que fazem isso e não vivem debaixo da ponte. Mas sobrevive com risco reduzido, em seu trabalho de professor e pesquisador em uma universidade pública, o que nesse país significa que seu emprego é mais ou menos estável e, embora atravessado por complicações sem conta, umas estruturais e sérias e mil e uma espúrias e risíveis, lhe dá conforto, alguma satisfação, e a oportunidade de se sentir, algo romanescamente – e quem vive sem ficção que atire a primeira pedra – menos vítima da máquina do mundo.

Ou seja: não vive “de literatura”, e de fato não faz a menor idéia do que poderia ser isso. Teme perguntar isso aos autores que conhece, embora já faça anotações sobre o tema há meses, embora deseje escrever a respeito. Profissão: Autor – o que pode ser isso? Inquirido na escola sobre a profissão da mãe, um garotinho responde Minha mãe é autora, ficcionista. O que pode ser isso? Sabe, por relações de maior proximidade, que um determinado Autor vive bem, pelas benesses da família e por um trabalho colateral na mídia; outro tem uma competência muito específica que o torna buscado para trabalhar em campanhas políticas, e dessa operação sazonal tira seu sustento; outra trabalha como tradutora, outro vive perigosamente – todos ganham alguma coisa de direitos autorais. Apesar do desejo de saber, tem vergonha de sair perguntando, e isso porque há um embaraço no negócio de extrair o sustento do literário: é, obviamente, um trabalho, um negócio, mas sua especificidade tem algo de esquivo. Esse componente fugidio não tem a ver, necessariamente, com sua condição de “arte”. Mesmo se visto de maneira mais operacional, como artesania, fruto de empenho sistemático e resultado de prática deliberada, ainda assim a coisa se complica na circulação de papéis, expectativas, performances, valores, o diabo.

O que publica de resenhas no jornal depende de um relacionamento com um grupo pequeno de jornalistas, desde sempre marcado por gentileza e urbanidade: eles o solicitam, ele os solicita, negociam prazos e possibilidades, e assim a coisa vai tipo meio a meio, com ele criando demandas para resenhar livros de autores que já lê e admira e sobre os quais já pesquisou e escreveu e também recebendo demandas para comentar autores que talvez não lesse não fosse o imperativo da resenha. Não tendo de se sustentar com o que recebe por esses trabalhos, o que ganha vira uma espécie de bônus de bom comportamento,  um prêmio para o Funcionário do Mês que, via de regra, é vertido na aquisição de outros livros que, por fim, verá que não tem mais tempo para ler. Pois há os textos dos alunos, que tem de ser prioritários, e há os mil textos próprios do restante do ofício – atas, relatórios, projetos, prestações de contas, planos de curso, avaliações, pareceres. Há sua pesquisa, sobre a produção ensaística contemporânea, que lhe consome, tem lhe consumido muito tempo, vai lhe consumir mais tempo ainda; há o projeto de uma biografia de Juan José Saer, ainda em seu embrião, que não deseja que morra no nascedouro. Há mil e um planos, e todos custam leitura, leitura, leitura, e esse é só o começo da conversa.

Lembra de quando estava no mestrado, chegando cedo na biblioteca vazia, cumprimentando as bibliotecárias e se deixando enlevar por uma ou outra leitora compenetrada, gastando horas na leitura de números velhos do NYRB, em um uso quase injustificável do tempo que deveria estar investindo em leituras para a dissertação. Obrigação e diversão, concentração e digressão, maldita economia. Nunca seria um comentador de literatura hoje sem aquelas manhãs, sem aquela lentidão, sem aquele desajuste temporal e procedimental com sua circunstância e com seus colegas que, mais ciosos da própria carreira e talvez melhor orientados, avançavam em linha reta, como demônios.

Lembra, no caos de papéis em cima da mesa, debaixo das mil obrigações de papel, na hora de decidir o que levar para a praia, de um momento de A Mulher do Tenente Francês no qual o narrador diz algo como É isso que costuma acontecer, não estranhe: as pessoas somem de vista, tragadas pelas sombras das coisas mais próximas. Lembra do vaticínio de ML no decálogo que ele vem elaborando com óbvio gosto há tempos, publicando e republicando, como se fosse um manifesto: não gosta do tom délfico, da empáfia (“Dez mandamentos? Caralho…”), da unilateralidade do negócio produzido em torno da anomalia (o caso Parker). Mas, independente de tudo que é da ordem do gosto, lê verdades ali, e lê com particular melancolia o momento em que Laub diz que

Você lerá só por obrigação. Nunca mais irá atrás de um livro indicado por um amigo. Nunca mais fechará um livro com a sensação de que, para o bem ou para o mal, e isso é quase regra para leitores mais experientes, não há o que dizer sobre ele.

Há algo aí, há um aprendizado aí – como também há no entusiasmo do AdMan quando começou a receber livros “espontaneamente“, que começaram a brotar em sua caixa de correio sem demanda, indicativo de um reposicionamento no campo, sem dúvida marcador de prestígio e de progresso. Há vaidade, há a sensação de reconhecimento e recompensa – há ganho sim. Mas o que fazer com o rapaz que lia por horas a fio aqueles exemplares velhos do NYRB e o Folhetim da Folha e pensava que queria aquilo pra si?  O que fazer com o rapaz que, fumando muito, se preocupava com dinheiro para mais cigarros assim que acabasse o maço e, com ele, o livro de Perec que seu amigo lhe emprestou? Uns jornais velhos e amarelados, o cinzeiro cheio, uma poltrona herdada e perdida, e uma pessoa que não existe mais e, claro, não tem mais nada a dizer.

Sabatina

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 22, 2010

Uma manhã sem natação = melancolia. Mais: obrigações sem conta no fim de semana, das mais prosaicas e sociais (o aniversário de uma amiga, ir ao supermercado) às mais portentosas e amedrontadoras (um artigo para começar e terminar, computar as notas dos alunos para devolver os trabalhos, ler todos os trabalhos que ainda não li). Tinha prometido a uma aluna – entenda-se: uma boa aluna, do tipo que merece esse tipo de compromisso – que comentaria um artigo que ela vai apresentar na segunda, e é essa a razão que, junto com tudo que mencionei antes, me traz aqui, para esse PC, para esse post.

Va bene, tudo ok, penso. E realmente acredito nisso: tudo ok. Mas, por favor, não venham me dizer que professor universitário não trabalha. Você, aluno, que pensa que a vida do professor é uma maré mansa sem fim: pense melhor, e pense bem se você quer isso, se deseja algo assim para si – pois eu tenho visto desejos de fama, fortuna, importância, prestígio, carro importado, e sempre muitos desejos sem fim de auto-engrandecimento, mas ainda não vi um de vocês lendo Don DeLillo pelos corredores, ou escrevendo um blog que não envergonhe a mim, que não o escrevi, que sou apenas seu leitor. Vejo, alunos, seus mil desejos escancarados, pendurados no pescoço pelos corredores, e peço a vocês apenas que trabalhem comigo e com os outros professores a partir de desejos minimamente compatíveis com esse negócio que vocês, em tese, vão fazer na Universidade. Por favor, ofereçam a este, e aos outros professores, a benesse de se defrontar casualmente com a excelência discreta e intempestiva; dêem – como um dom maussiano, sabendo que vai e volta – a seus professores a grande dádiva que será lidar com vocês sem ter de amaciar seus egos cotidianamente, ou pisar em ovos todo o tempo para não ferir suas sumamente situadas, apesar de quase universais, vaidades, ou simplesmente para nos permitir um tempo de trabalho sem que tenhamos de pensar quanto de nosso exercício é consumido no cobrar.

E você, camarada Autor: por favor, pare de pensar nos críticos de literatura como seus antagonistas, ou como a escória da humanidade – estamos no mesmo negócio, camaradas, e se há integridade moral vivendo ao lado de filhosdaputa incompetentes do meu lado da cerca, certamente há o mesmo em sua região também.

E você, camarada Crítico de Literatura, pare de usar hipérbole como se fosse juízo e evidência de vida inteligente – via de regra não é. Inteligência, às vezes, aparece como uma espécie de subproduto adventício, como o suor que às vezes encontramos do lado da geladeira, dessa atividade quieta, meio melancólica mas eventualmente produtora de muita felicidade, a leitura.

E agora vou ler, claro.

Shields, Coetzee

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 13, 2010

Pela primeira vez em muito tempo, pude terminar uma resenha, deixar descansando dois dias, e reler, e revisar, e alterar umas coisinhas antes de enviar: que coisa mais refrescante e feliz. Semana que vem estará lá, no caderno, e será outra alegria.

Ano passado, em Setembro mais ou menos, liguei para minha mãe e ela disse Chegou um livro aqui pra você. Dias depois, quando fui lá, qual não foi minha surpresa ao encontrar Summertime, de Coetzee: junto, nenhuma explicação, só uma nota de envio com informações de almoxarife, na qual estava escrito à mão “Review copy”. Não eram as provas do livro, era o livro mesmo, capa dura e tudo – não faço a menor idéia de quem foi o responsável por isso, e sei que há uma cadeia de relações e indicações por trás de algo assim; o fato de terem enviado para a casa de minha mãe indica que tinham um endereço antigo meu, mas e daí? Por mais que pensasse continuava ao léu – mas, é claro, muito feliz, com o livro na mão.

Comentei isso com o Kelvin, e ele me disse Não vejo a hora de isso acontecer comigo também, Tio. Ele estava, mais uma vez, coberto de razão (isso é um puta non sequitur, mas é também verdade): eu também durante muitos anos desejei que isso acontecesse comigo, desejei ser surpreendido por livros chegando em minha casa inadvertidamente. Claro: como todos os desejos, este, quando se realizou, acompanhou a forma que lhe é própria, agregando mil sedimentos à sua casca em uma deriva peculiar entre a formulação imaginária e a coisa batendo à sua porta, obviamente uma forma incompatível com aquela, sempre pálida, mansa e unilateral, com a qual aparece pela primeira vez. Assim, os livros chegam, e são muitos, e muitos sem ter necessitado de minha agência de maneira alguma. Mas uma surpresa como essa, receber o livro de Coetzee recém saído do forno – isso é raro sim, e é bom sim, e eu desejei muito ocorrências como essa em minha vida. É um pouco como as “impossible good news” que Chesterton mencionava, e que minha irmã tanto preza.

O livro é formidável, e senti muita alegria ao terminar essa resenha – não só por ter conseguido revisá-la e fazer um texto que, creio, não insulta o texto que o motiva, mas porque tem um trabalho do cão por trás da coisa toda, desde as conexões misteriosas entre meu nome e o de alguém, alhures, que houve por bem me enviar o livro, até a leitura do livro, cheia de momentos muito pungentes, que comentei com o Tiago e com o Leandro e, também, claro, com o Kelvin, passando pelo post que escrevi na época em que li o livro, até chegar ao texto, esse, que acabei de terminar.

Assim que terminei, coloquei Loveless pra ouvir. Talvez, penso agora, tenha escolhido esse disco porque ele parece aquela obra que silencia seu autor: o que fazer depois disso, o que produzir mais, o que produzir ainda? O que será que Coetzee ainda escreverá, o que vem dali, o que virá, como eu lerei, quem lerá? Responder essas coisas é como querer desvendar o paradeiro de velhos amigos, aqueles com com os quais eu tomava cerveja e falava de Kevin Shields no fim da noite em verões passados, todos longe agora, remotos como o tempo em que eu era um cara que desejava receber em casa inadvertidamente livros para ler e comentar e não fazia a menor idéia dos livros que leria assim, do que viria junto com os livros, do que virá.

Primeiro de Maio

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 3, 2010

1. Fato: Quase um mês sem um post. Mas sem desculpas: há mil e uma maneiras de fazer anotações, e esta é apenas uma delas.

1.2. Razão: Boa parte do tempo assim-chamado livre foi dispendido frequentando o excelente blog que, aliás, estava lá, na última nota que escrevi aqui. Por conta da folia em torno do texto da Flora Süssekind, terminei lendo blog pra chuchu esses dias. Mas, claro, houve mais, muito mais: aulas e correção de trabalhos, como sempre; um evento protagonizado por um grupo com o qual trabalho, que aconteceu com sucesso, embora eu estivesse um pouco abatido durante toda a semana, com um mal-estar indefinido, uma espécie de gripe encruada que foi forte o suficiente para me impedir de ir à natação (!); resenhas para O Globo: já saiu a do poeira: demônios e maldições, do Nelson de Oliveira e por sair estão as do Doutor Pasavento, do Vila-Matas e a do Verão, do Coetzee.

1.2.1 Fato peculiar: O AX escreveu resenhas em paralelo às minhas para os livros do Vila-Matas e do Coetzee – por email, comentamos a coincidência, e fiquei pensando se isso dizia algo sobre as características desse trabalho no Brasil hoje. Mas logo me censurei por estar querendo extrair sentido disso também. Por que isso deveria ter algo a dizer?, pensei. Tem coisas que só acontecem, não tem de ser instâncias de outra coisa – embora, claro, sempre possam ser outra coisa também, como aliás a literatura é pródiga em mostrar.

2. Leituras: Além dos livros mencionados e mais um outro, que comentarei aqui depois (é este aqui), li várias coisas em torno de biografia para o ensaio que estou preparando para o JALLA; o mais digno de nota foi um artigo de Hibbard, “Biographer and subject: a tale of two narratives”: excelente, casos bem costurados, pouca conclusão e até, diria um leitor com má vontade, pouco “aprofundamento” – mas bom justamente por isso, porque abdica de dizer tudo, porque esboça o problema, esclarece as vias de ataque selecionadas pelo autor, e sai de cena – fica o leitor, com seus problemas. Bom, isso é bom.

2.1 “Bom”: Um post futuro reclama ser escrito sobre a criteriologia ordinária que me leva a dizer que, por exemplo, o artigo de Hibbard é “bom”. Ano passado escrevi sobre isso, depois apresentei outro trabalho numa mesa sobre isso – é o bendito tema do valor literário, mais uma vez aparecendo para me assombrar. Outro dia estava relendo esse texto do Jaime Ginzburg e pensando no quanto me custaria produzir uma réplica mais consequente do que as anotações que já fiz a respeito do artigo dele aqui e ali. Há algo no tema que me estimula, em parte acidente de formação (minha relação com BHS, por exemplo, que não é nada trivial no que diz respeito a esse assunto), em parte por saber que o debate é sempre quente nesse setor, e potencialmente infinito – e isso me deixa com vontade de dizer algo a respeito, de participar da conversação. Bom, isso é bom – pra mim.

3. Romance de formação: No telefone, minha irmã comentou Como é que você bota no seu blog um post de Romance de Formação com três discos e nem menciona o LC? Eu poderia ter me desculpado dizendo a verdade – que o referido post foi pensado como o primeiro de uma série, todos com aquela mesma característica, discos e uma historinha pessoal. Mas, ao invés disso, senti vergonha, como se eu tivesse feito, inadvertidamente, uma coisa má para um amigo – uma coisa que em mim teria sido só um certo descaso, mas no amigo teria causado tristeza e sofrimento. Então vim remediar o mal e fazer aparecer aqui o Durutti Column, LC, comprado na Mesbla, em 1986.



Três notas

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on abril 3, 2010

1. Señor Daniel Pellizzari retorna à vida online, sabe-se lá por quanto tempo – é boa notícia.

1.1. Referido senhor, no twitter, indica um blog do qual nunca tinha ouvido falar.

1.1.1. Referido blog, de um acadêmico, parece com o que gostaria que este blog aqui fosse caso desse certo – significando portanto que há uma certa idéia de correção que aplico aqui, significando que este blog tem não apenas um ethos, mas também um telos.

1.1.1.1. Há mais que isso, claro: neste post, por exemplo, me sinto muito próximo do autor: apesar de todas as distâncias (pra começo de conversa, o cara ensina em Londres), seus problemas são os meus também – embora não sejam exatamente iguais, guardam uma inegável semelhança de família com coisas que me afligem e, ao tomar conhecimento dessa semelhança, me vejo devolvido a C. S. Lewis dizendo We read to know we are not alone.  É certo que lemos por mil e uma razões que não essa, mas também é certo que há uma dinâmica de identificação, uma produção de empatia que, embora às vezes de foco errático, faz da leitura isso que me traz até aqui para comentar o blog que o Pellizzari recomendou e daí derivar para mencionar C. S. Lewis. É essa mesma dinâmica que me levava, já faz um tempão, a custear os intervalos de minhas aulas de inglês com a leitura do finado blog do Pellizzari no wunderblogs. Os demais autores desse coletivo me pareciam abominações, e me impressionava ver como se jactavam com facilidade, como se compraziam de si. O que pode levar um cara a achar que é bom ser um reaça colocando pó-de-arroz nas próprias tetas em um arremedo de vir a público?, aquela versão mais naïf se perguntava. No meio dessas coisas, e no meio das hostilidades com as quais eu me deparava quase que cotidianamente, ler o blog do Pellizzari era um bálsamo e um refrigério, meu encontro com um artifício aparentemente feliz de autocriação, o lugar onde aprendi a dar o devido valor ao Fail better.

2. Li no Estadão, numas notinhas que a Raquel Cozer faz no rodapé, que o AX está deixando sua condição de mais ou menos autopublicado e mais ou menos independente para assinar contrato com a Rocco. O parabenizei, claro: é um indicador mais ou menos óbvio de reconhecimento e progresso, imagino que ele esteja feliz e celebrando. E me pergunto: o que será essa experiência? A Punk goes Pro? O que isso representa na construção da autonomia financeira, e essa autonomia o que representa na fertilização de outros trabalhos do autor, e ambas as coisas o que representam no incremento da possibilidade de divulgação do trabalho literário, em auxílio para que esse Autor tenha acesso a mais e melhores leitores?

2.1. Essas questões que me ocorreram com relação ao caso do Xerxenesky – a quem poderia perguntar essas coisas, a quem provavelmente vou perguntar essas coisas – tem a ver com um tema que me interessa e com um texto que estou fazendo (molto lento, lentissimo) sobre Como vivem os Autores.

2.1.1. Como vivem os Autores? De onde tiram os recursos para viver sua vida de Autores, com estilo de Autores, amizades de Autores, consumo de Autores? Não estou interessado nos murmúrios privados da Guilda – aos quais provavelmente não teria acesso – mas sim nos elementos que talvez pudessem ajudar a consolidar uma compreensão dessa profissão no Brasil hoje. Ou então ver se falar em “profissão” é insultar a matéria para seus praticantes – ver se é o caso de recuperar o vocabulário da “vocação”, do “chamamento”, com suas conhecidas implicações de destino, inevitabilidade, abnegação.

2.1.1.1. Tenho pensado nessas coisas e me interessado em fazer esse texto porque com uma frequência cada vez maior ouço colegas falando sobre um curso de “escrita criativa”, a ser inaugurado na universidade em que trabalho. E me pergunto.

3. A resenha mais infeliz que leio em muito tempo é essa. Não seria o caso de examinar aqui com minúcia a natureza das muitas infelicidades desse texto.  Mas talvez seja o caso de pensar sobre o bombástico parágrafo final, e sobre o que esse parágrafo, enquanto instância exemplar, pode nos dizer sobre como um Autor brasileiro contemporâneo comenta o trabalho de outro Autor brasileiro contemporâneo. Pode nos dizer algo? Há algo mais para se dizer sobre isso?