ensaio

Tenho quatro amigos

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on setembro 20, 2014

O primeiro é bonito, vaidoso, encantador: é um mitômano, uma espécie de perene ficcionista da oralidade, vive tecendo suas histórias enquanto ajeita a roupa e o topete, e ergue as sobrancelhas, como se passasse marca-texto no que diz, e confirmasse com seu interlocutor alguma coisa que é da ordem do pacto de bastidores que travaram antes da conversa, no qual tudo foi acertado. Nos conhecemos assim, nos arredores de nossas mentiras, e de lá nunca saímos, o amor pela ficção um elixir que tudo cura, e um certo comunismo de minha parte que garante um atrito útil com um certo fascismo da parte dele. Ficamos embevecidos quando, depois da décima cerveja, ele se dedica a erguer alguma revelação, esboçar alguma narrativa que, sendo sempre mentira, nos dará algum encontro com o novo, o inusitado, o insólito, o belo. É muito generoso, e todas as vezes causa problemas nas contas de bar por querer pagar demais; sua motivação nunca é a culpa, sempre é a alegria. Costuma dizer que é invejoso, e que deseja ser autor, ostentador, magnata cultural. Mas essa é outra de suas ficções: o que deseja é estar ali, centro magnético da mesa de bar, ou caminhando pela Rua da Glória, marionetando suas histórias, sua audiência, confiante no abraço de despedida feliz no fim da noite. Uma vez, estando com ele em um bar repleto, chorei; no bar cheio, era notável que as outras mesas se interessavam pela anomalia de um adulto se emocionando em lugar impróprio: ele se manteve impassível e solidário, silencioso, ouvinte, amigo.

O segundo é quieto e reservado; sei que é meu amigo, e na medida em que nossa vida errática permite sempre atesto com felicidade os esforços que ele faz para me encontrar, muitas vezes para que a gente converse bem pouco, como se não precisasse mais disso. Uma versão das amizades inglesas preconizadas por Borges, excluindo de saída a vulgaridade da confidência e prescindindo do diálogo sempre que possível. Dizem que era tímido na adolescência e, embora hoje esteja longe dessa coisa própria da timidez que é o impedimento à vontade, ainda parece se comunicar com essa área da experiência de uma maneira que me é alheia; me atribulo no trabalho (carreira, projetos) e na vida (dinheiro, brigas) de um jeito que parece nunca ter sido problema pra ele, senhor tranquilo de um saber que não possuo aí. Nosso horizonte de conversas se concentra em nossa experiência com nossos pais; nossos problemas com a literatura; nossas perturbações com as mulheres. Há coisa de um ano ele estava morando em X, cidade onde morei há muito tempo e que virou uma espécie de explicação e signo místico para mim, lugar em que me reconheci como pertinente e pertencente ao mesmo tempo em que me sabia excluído e menor, em um processo tão ambivalente que até hoje imagino ser essa uma de minhas características mais fáceis de detectar. Nos falamos no skype, ele muito triste e com frio, e fiquei numas de animar ele recuperando momentos de minha vida lá, perguntando “Ainda tem isso em tal rua?”, “Ali na esquina de A com B tem tal coisa”, “Você já foi em Z?”. Recuperava aqueles lances de memória já muito manipulados e gastos pelo uso, mas dessa vez com ele como protagonista, ele nas ruas em que andei, ele com minha calça jeans e camiseta branca, ele admirando coisas, experiências, mulheres inatingíveis, inesquecíveis.

O terceiro mora em um quarteirão solitário, perto da praia, numa casa repleta de livros. Seus irmãos, muitos, foram se mudando e ele foi ficando: vive com os móveis e objetos dos anos oitenta de uma casa que precisa de pintura, a casa onde ele nasceu e cresceu e onde continua até hoje. Minha admiração por ele é quase infinita: sua delicadeza tranquila, um homem corpulento, de quarenta anos, que nunca parece ter se desgastado tentando provar nada para ninguém e que portanto é desprovido da carapaça na qual eu, por exemplo, investi tanto tempo e dinheiro. É muito erudito (lê em russo) e rodado (passou dois anos vivendo no leste europeu; antes, morou num kibbutz) e é um dos melhores autores de sua geração, maior ainda por parecer não se importar com fato de ser quase desconhecido e seriamente desprestigiado para quem tem tanta imaginação e força, abundante a ponto de permitir que ele publique naquela lata de lixo da história que é o facebook posts como esse

Quando meu pais eram vivos sempre esperávamos uma visita que nunca chegava. Tínhamos que estar de banho tomado, com roupas sempre limpas, cabelo penteado. Alguém, nunca soubemos quem, podia chegar a qualquer momento na nossa casa. Os móveis tinham que estar impecáveis. Os brinquedos trancados em um quartinho. Minha mãe forrava a cama enquanto eu ainda estava dormindo sobre ela. Naquela época eu ainda não sabia, mas no meu caso a visita eram os livros. Essa é a minha love story, como diria Haňt’a. Escrevo isso enquanto indico um livro para uma amiga. Escrevo enquanto lembro da minha leitura de Jardim, cinzas, de Danilo Kiš. Escrevo enquanto, sem pensar muito, defino assim o livro para uma amiga: É como se o Tio Pepin de Hrabal irrompesse nos salões do Palácio dos Sonhos de Sandman e lá encontrasse as crianças da Rua Paulo e todos dançassem o Čoček.

Ou esse:

Devo a César Aira a ideia que os acidentes de memória criam todo tipo de monstros. Às vezes lembramos algo que já não sabemos se aconteceu daquela maneira ou foi nossa imaginação que criou e preencheu as partes que estavam faltando com simulacros dos acontecimentos, como os dinossauros do Jurassic Park criados a partir de rãs. Assim também são com os livros que nos surpreendem quando procuramos um trecho que imaginávamos de outra forma. Assim é com os livros que li, assim é com Moby Dick, assim é com Extinção. Ambos são relatos obsessivos sobre a extinção. E provavelmente não foi assim que aconteceu, mas foi assim que lembrei: Queequeg é Gambetti. Bernhard e Melville escrevem antibiografias. A grande baleia branca é a Áustria nazista. O redemoinho no mar e na linguagem. O apagamento da origem, da nação, dos pais, do poder. O curto-circuito entre memória e esquecimento. A carta nunca entregue de Kafka ao seu pai.

A menção a Aira não é trivial para mim: conheci Aira por ele, que me enviou um livro, Um acontecimento na vida do pintor viajante, que foi meu primeiro Aira, e que terminou me levando a escrever uma tese sobre Aira. O livro, lamentavelmente, se perdeu em minhas separações e mudanças, mas recordo que a dedicatória dizia, aludindo a minha pobreza e quase impossibilidade de comprar livros novos Meu amigo, ganhar não é comprar.  É o único de meus amigos que tem a barba cheia, o mundo não sabe apreciá-lo, não conhece a alegria de sua proximidade em uma mesa de café, ao redor de uma pizza, a seu lado, caminhando, na calçada, na parte velha da cidade. 

Esses são os quatro amigos.

Prague, Hrabal

“Eu também tô lendo Karl Ove”

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on abril 8, 2014

Estou lendo os livros do Karl Ove. Milhares de noruegueses e suecos já leram, e aqui estou correndo atrás, esperando as traduções saírem, ávido. Não sei exatamente o que os livros tem, e como eles fazem o que fazem: isso me interessa, pois é parte de meu trabalho examinar essas questões. Mas, por enquanto, estou lendo os livros do Karl Ove como se fosse possível apenas ler os livros do Karl Ove. Coisa vã: acho estúpida a alusão a Proust, que virou um vício do cachimbo da recepção, e outro dia vi um sujeito comparando o Karl Ove a, valha-nos deus, FranzenNada a ver, cara, pensei. Nada a ver.

Estava eu portanto com meu Karl Ove na mão, já o volume 3, e lembrando de coisas que a C falou sobre a vida na Noruega, sobre os anos que ela passou na Noruega e sobre como tem sido bom pra ela ler o Karl Ove e lembrar dessas coisas. Sim, eu tenho sido evangélico com o Karl Ove, eu tenho presenteado as pessoas com o livro, tenho insistido para que leiam, tenho dito Leia, cara, é bom, ou Rapaz, esse livro é do caralho, ou O melhor livro que eu li ano passado foi esse, e coisas da mesma estirpe.

Sendo as coisas como são estava eu assim sentado no sofá ao lado de minha sogra que, diante da novela na TV, dizia, não exatamente pra mim, mas pra qualquer audiência que tivesse, inclusive a dela mesma, que Nessa novela não acontece nada mas eu não consigo deixar de ver essa porcaria! Fala enfática, declaração de perplexidade: constata-se uma falência, mas apesar disso afirma-se um sucesso; constata-se uma falência e talvez exatamente por isso verifica-se um sucesso. A audiência diz que o gênero está sendo violado: viola-se o gênero, rompe-se o pacto, frustram-se expectativas. E todavia: ouvindo minha sogra comentar a novela respondi É, eu também tô lendo Karl Ove. Mas respondi isso comigo mesmo, sem falar.

 

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on outubro 22, 2013

Me dei conta de que desde que meu pai morreu só li coisas em torno do tema. Reli Patrimônio, de Roth, nos dias depois do funeral: tinha me esquecido de muita coisa, e muito do que li pareceu novo, tocado pelo incidente recente. Lembrei de andar com meu pai pelo Comércio, pela região onde ele trabalhava e onde eu costumava encontrar ele para almoçar nos últimos anos: a gente andava por ali e eu às vezes mencionava uma ou outra coisa de um passeio semelhante na infância, quando ele me levava lá nos sábados de manhã. Eu lembrava de umas escadarias sinistras de madeira, e do ambiente das oficinas de alfaiataria, daqueles coroas todos com a fita métrica ao redor do pescoço, uma estola laica e operária que, junto com um certo bem-vestir, era diacrítico do ofício, eu estava aprendendo. Qual será o diacrítico do meu?, penso, agora, já extenuado e sem saber se é mesmo Paul Auster quem diz de como se consumiu ao saber da morte do pai, e de como a morte do pai se confundia com seu desaparecimento. Com meu pai não: ele está presente, e semana passada mesmo estive naquela região e subindo o elevador me vi de novo no retorno de tantos almoços com ele, e me pensei passeando com ele mais uma vez por ali, conversando sobre política, trabalho, mulheres, livros, os dois infensos ao passar do tempo o que quer dizer, claro, imunes aos respectivos funerais, como é de praxe, aliás, e que bom. Pois há uma oscilação entre sempre lembrar que vai acabar e passar e sempre esquecer do mesmo, e a faca corta dos dois lados, então foi assim que me vi ali, outro dia mesmo, saindo do Elevador e pensando que eu só estava lendo esses livros sobre pai, morte, perda, o Roth, o Karl Ove, o Diário do Luto do Barthes, eu tentando escrever sem conseguir, consumido e infeliz, no meio do caminho e meio sem vontade de ir pra alhures. Na frente do elevador, passei um tempo enorme, como se fosse nada, tentando e sem conseguir, incapaz de escrever, em outro lugar.

Um dia, em Belo Horizonte, encontrei no Mercado Central o cara que me atendia no restaurante japonês: ele estava de bermuda, comprando os ingredientes, conversando com todo mundo. O cumprimentei, ele me cumprimentou, e ao longo dos próximos onze, doze anos isso se repetiu, a gente se cumprimentava no mercado, e se encontrava no restaurante de novo, e assim ia. O restaurante era um desses em que aparentemente a família toda trabalha e mora: uma casa grande, uma comida que nunca mudou, um negocio que nunca se expandiu. Umas vezes eu via uma senhora já bem idosa com um carrinho de bebê, cuidando de uma criança.

Quando voltei para Salvador, descobri aqui perto de casa um pizzaiolo que me lembrava aquele cara de Belo Horizonte. Ele morava em uma casa também: abriu a garagem e a transformou em uma pizzaria pequena, fez um forno de tijolo, varias vezes eu passava e via ele limpando o forno, a pia, no iniciozinho da noite. Varias vezes fui la, não lembro qual foi a primeira vez: ele me atende, é uma pizza boa, honesta, só nos fins de semana ele trabalha com um ajudante que atende o telefone e um cara de moto que faz a entrega. Logo mais se for lá aposto que ele vai estar limpando o forno, começando o negócio dele pra hoje. E se eu estivesse hoje à tarde no Mercado Central de Belo Horizonte, naquele horário em que tantas vezes estive lá fazendo hora, esperando a van pra Divinópolis, perigava eu encontrar o mesmo cara do restaurante lá também, fazendo suas coisas, e a gente ia se cumprimentar etc

Então um homem está aí, começando seus negócios do dia, seu trabalho, arrumando sua oficina, criando condições. Aqui estão os seus afazeres, suas responsabilidades, eis aqui como você vai ganhar seu dinheiro. Meu pai uma vez me contou que costumava ficar encostado num poste perto de casa sábado à tarde, quando voltava do trabalho: só ali, passando o tempo, olhando as mulheres provavelmente, se aclimatando ao fim de semana miúdo do pobre, e saindo de casa. Um dia, disse, ouviu uma voz lhe dizendo Saia daí, rapaz. Vá pra casa! e ele, que não tinha mesmo nada melhor pra fazer, saiu, e foi: isso foi em 60, 61 talvez, muito antes de mim, e assim não é sempre? Para o coração, a vida é simples.  Um homem está aí, cuidando de suas contas, amealhando suas coisas, fazendo palavras-cruzadas, gastando fantasia, começando seus negócios na vida, sem trabalho, arrumando sua criação, tendo um filho, sendo sarcástico, perdendo também, evidentemente, apesar de tudo, por tudo. Compra os ingredientes, limpa seu forno, arruma a oficina, atende o telefone, comenta, opina, come, pensa. Aqui estavam seus gostos, suas coisas, aquilo em que se investiu e errou ou acertou pouco se me dá pois agora, agora não se faz mais nada, foi.

 

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