Joseph Mitchell, Dad, 1992
Lembramos daquele comentário de Piglia: um crítico narra sua vida ao escrever sobre os livros que leu – suas leituras inscrevem um padrão de saliências específico nos textos, uma marca de identidade hermenêutica. Isso faz sentido: basta ler o blog do Zé Castello ou o do Kelvin por um mês pra perceber que há algo dessa ordem em operação – não é apenas estilo, é mais um modo de usar.
A publicação recente de uma tradução de trechos dos Diários de Cheever me fez dar atenção ao canto da estante no qual estão depositados meus livros de Cheever – Cheever estava na berlinda, vários conhecidos comentando, então pensei em Cheever de novo, fui me aproximar dele de novo, e fui pro canto da estante onde estão seus livros:
É só um amontoado de livros – mas a história do seu amontoamento é, certamente, uma biografia: o crítico também escreve sua vida nos livros que acumula, como os acumula, como os separa, organiza e controla, o que mantém, o que dissipa. Ora, tenho trabalhado como um cão ultimamente pra escrever uma biografia de Saer – mais: para dar sentido ao projeto de sentar todo dia para escrever uma biografia de Saer. Se esse arroubo a respeito da vida nos livros que se tem funciona, o que faria eu diante de um trecho de prateleira de livros de Saer? Esses livros seriam indício suficiente de quê? Servem para quê, a não ser para serem manuseados por febris epígonos fanáticos, eventualmente fazerem uma graninha para a família, os Nobres Livros do Autor Morto – servem para quê?
Posso favorecer a hipótese da utilidade tomando minha própria prateleira na foto como exemplo: aí estão minha vida em NY (os balcões mais baratos da Strand), uma ex (duas, melhor dizendo), um amigo perdido, a época em que queria ser tradutor, o momento em que parei de fumar (era 2008, janeiro, e estava lendo os Diários de Cheever), etc. Aí está também aquela história do Kelvin indo no Berinjela vezes sem conta e vendo o volume de cartas do Cheever e paquerando o livro sem comprar até que, anos depois, o Berna o enviaria pra mim – exatamente o mesmo livro, passando por dois amigos meus, e chegando a mim graças ao antigo dono, ignorado, sem nome pra mim, que um dia o depositou lá no Sebo – e como abriu mão das cartas de Cheever, em benefício de quê.
Aí está também, envolvido num papel pardo para proteger um pouquinho a capa, um de meus livros favoritos, o quarto exemplar que tenho do mesmo livro, Up in the Old Hotel, de Joseph Mitchell. Mitchell, que tinha uma paciência de Jó, escreveu esses textos maravilhosos, nos quais não se conta quase nada: são só umas histórias de tipos ordinários, que se fazem envoltos em mistérios vãos acho que mais pela força magnética que a noção de idiossincrasia exerce sobre nossa espécie que por qualquer outra razão. São histórias de quase nada, e todavia. Lembro de uma época em que lia os capítulos, ritualisticamente, toda terça e quinta à noite: eu não trabalhava nesses dias, e ficava grifando trechos e sonhando em escrever bem (eu também fumava, e nem pensava em parar). Lembro de minha melancolia ao ler Joe Gould’s Secret, e como me surpreendeu o fato de estar aparentemente mais tocado ao ler o texto pela segunda vez, tolamente surpreso por estar contrariando uma regra pseudocristã que dá sempre mais valor ao mais virginal (li esse texto em voz alta uma outra vez, lembro). E outro dia – está fresco, foi agorinha mesmo, agora no Natal – cheguei no hotel de uma visita a mil sebos, cheio de livros, feliz, e com mais um volume do mesmo livro de Mitchell. Deitei na cama, abri o livro e vi, então, a dedicatória.
Crítica literária 2.0
Costuma se sentir afortunado, e isso por inúmeras razões, uma delas sendo inclusive porque a disposição da sorte como um fator operativo no processo bloqueia uma sequencia causal mais estrita, reducionista e rudimentar, que colocaria no centro do palco noções de competência e excelência, e isso não seria bom para ninguém.
Em particular no que diz respeito à literatura, a fortuna efetivamente lhe sorriu, pois não sabe como seria viver disso. Poderia, claro, ser jornalista e trabalhar com literatura, tem amigos que fazem isso e não vivem debaixo da ponte. Mas sobrevive com risco reduzido, em seu trabalho de professor e pesquisador em uma universidade pública, o que nesse país significa que seu emprego é mais ou menos estável e, embora atravessado por complicações sem conta, umas estruturais e sérias e mil e uma espúrias e risíveis, lhe dá conforto, alguma satisfação, e a oportunidade de se sentir, algo romanescamente – e quem vive sem ficção que atire a primeira pedra – menos vítima da máquina do mundo.
Ou seja: não vive “de literatura”, e de fato não faz a menor idéia do que poderia ser isso. Teme perguntar isso aos autores que conhece, embora já faça anotações sobre o tema há meses, embora deseje escrever a respeito. Profissão: Autor – o que pode ser isso? Inquirido na escola sobre a profissão da mãe, um garotinho responde Minha mãe é autora, ficcionista. O que pode ser isso? Sabe, por relações de maior proximidade, que um determinado Autor vive bem, pelas benesses da família e por um trabalho colateral na mídia; outro tem uma competência muito específica que o torna buscado para trabalhar em campanhas políticas, e dessa operação sazonal tira seu sustento; outra trabalha como tradutora, outro vive perigosamente – todos ganham alguma coisa de direitos autorais. Apesar do desejo de saber, tem vergonha de sair perguntando, e isso porque há um embaraço no negócio de extrair o sustento do literário: é, obviamente, um trabalho, um negócio, mas sua especificidade tem algo de esquivo. Esse componente fugidio não tem a ver, necessariamente, com sua condição de “arte”. Mesmo se visto de maneira mais operacional, como artesania, fruto de empenho sistemático e resultado de prática deliberada, ainda assim a coisa se complica na circulação de papéis, expectativas, performances, valores, o diabo.
O que publica de resenhas no jornal depende de um relacionamento com um grupo pequeno de jornalistas, desde sempre marcado por gentileza e urbanidade: eles o solicitam, ele os solicita, negociam prazos e possibilidades, e assim a coisa vai tipo meio a meio, com ele criando demandas para resenhar livros de autores que já lê e admira e sobre os quais já pesquisou e escreveu e também recebendo demandas para comentar autores que talvez não lesse não fosse o imperativo da resenha. Não tendo de se sustentar com o que recebe por esses trabalhos, o que ganha vira uma espécie de bônus de bom comportamento, um prêmio para o Funcionário do Mês que, via de regra, é vertido na aquisição de outros livros que, por fim, verá que não tem mais tempo para ler. Pois há os textos dos alunos, que tem de ser prioritários, e há os mil textos próprios do restante do ofício – atas, relatórios, projetos, prestações de contas, planos de curso, avaliações, pareceres. Há sua pesquisa, sobre a produção ensaística contemporânea, que lhe consome, tem lhe consumido muito tempo, vai lhe consumir mais tempo ainda; há o projeto de uma biografia de Juan José Saer, ainda em seu embrião, que não deseja que morra no nascedouro. Há mil e um planos, e todos custam leitura, leitura, leitura, e esse é só o começo da conversa.
Lembra de quando estava no mestrado, chegando cedo na biblioteca vazia, cumprimentando as bibliotecárias e se deixando enlevar por uma ou outra leitora compenetrada, gastando horas na leitura de números velhos do NYRB, em um uso quase injustificável do tempo que deveria estar investindo em leituras para a dissertação. Obrigação e diversão, concentração e digressão, maldita economia. Nunca seria um comentador de literatura hoje sem aquelas manhãs, sem aquela lentidão, sem aquele desajuste temporal e procedimental com sua circunstância e com seus colegas que, mais ciosos da própria carreira e talvez melhor orientados, avançavam em linha reta, como demônios.
Lembra, no caos de papéis em cima da mesa, debaixo das mil obrigações de papel, na hora de decidir o que levar para a praia, de um momento de A Mulher do Tenente Francês no qual o narrador diz algo como É isso que costuma acontecer, não estranhe: as pessoas somem de vista, tragadas pelas sombras das coisas mais próximas. Lembra do vaticínio de ML no decálogo que ele vem elaborando com óbvio gosto há tempos, publicando e republicando, como se fosse um manifesto: não gosta do tom délfico, da empáfia (“Dez mandamentos? Caralho…”), da unilateralidade do negócio produzido em torno da anomalia (o caso Parker). Mas, independente de tudo que é da ordem do gosto, lê verdades ali, e lê com particular melancolia o momento em que Laub diz que
Você lerá só por obrigação. Nunca mais irá atrás de um livro indicado por um amigo. Nunca mais fechará um livro com a sensação de que, para o bem ou para o mal, e isso é quase regra para leitores mais experientes, não há o que dizer sobre ele.
Há algo aí, há um aprendizado aí – como também há no entusiasmo do AdMan quando começou a receber livros “espontaneamente“, que começaram a brotar em sua caixa de correio sem demanda, indicativo de um reposicionamento no campo, sem dúvida marcador de prestígio e de progresso. Há vaidade, há a sensação de reconhecimento e recompensa – há ganho sim. Mas o que fazer com o rapaz que lia por horas a fio aqueles exemplares velhos do NYRB e o Folhetim da Folha e pensava que queria aquilo pra si? O que fazer com o rapaz que, fumando muito, se preocupava com dinheiro para mais cigarros assim que acabasse o maço e, com ele, o livro de Perec que seu amigo lhe emprestou? Uns jornais velhos e amarelados, o cinzeiro cheio, uma poltrona herdada e perdida, e uma pessoa que não existe mais e, claro, não tem mais nada a dizer.
Opoyaz, ganha-pão
Eis que Kelvin aparece com mais dois posts muito bons, aqui e aqui. Ele está falando de coisas em meu terreno – que é também, em certa medida, o dele. Em que pesem todas as diferenças geracionais e estilísticas, ler, falar e escrever sobre Saer, Piglia, e mesmo Aira é parte do que põe o pão na mesa pra nós dois – nós dois participamos dessa fortuna.
Falei pra um amigo outro dia, Esses blogs são minha Opoyaz. Claro: uma Opoyaz ralé, pós-pós-tudo, cheia de Pro-Ams, sem tanta solidificação quanto sua matriz e inspiradora involuntária, sem manifesto, provavelmente mais apta a acolher diferença e vacilação que a versão anterior, privada de gênios. Mas é um coletivo que mantém uma rotina de conversações e barganhas que nutre as produções de cada um; com sua particularidade faz uma coisa que, independente de qualquer telos desejado ou projetado, é vida literária no século XXI.
Por exemplo: há alguns dias, o assim-chamado Andreis Passarinho publicou em seu blog uma análise sinóptica do trabalho de Bernardo Carvalho. É um post de umas mil palavras, mais de seis mil caracteres: é bem mais do que tenho quando escrevo pro jornal. Salvo engano, aí está ele a usar seu blog para fazer um negócio que, na falta de melhor palavra, é crítica literária. Observem que o crítico anota a obra, se posiciona, exibe o comentário na esfera pública – se isso ainda não é crítica, não sei o que é, e vou me poupar de brandir Terry Eagleton por hora.
Postei em uma comunidade do Orkut que modero um comentário sobre o texto do Andreis; disse:
Eu concordo e discordo ao mesmo tempo com quase tudo! O básico é que os aspectos que o crítico usa para malhar são para mim sinal de excelência: acho que BC se esforçou bastante para produzir dois grandes livros – o Nove Noites e o Sol se põe em São Paulo – e agora está iniciando um outro negócio, que vamos ver no que vai dar.
Eu teria, terei muito mais a falar sobre BC – como vcs ja sabem. Já escrevi sobre o cara, e não tenho problema em dizer que o “estudo”, que o que ele faz é incorporado por mim a parte de meu trabalho tb. Mas, antes de meter minha colher, queria ver o que vcs acham do post aí. O que vcs acham?
E, em questão de horas, li que o Diego Giesel pensava que
AM, quando o Andreis falou sobre o Vida modo de usar eu pensei a mesma coisa. Concordo e discordo.
E que o Refrator de Curvelo, por sua vez, achava que
Não. Eu tendo a concordar. Estou mesmo incomodado com as coisas que o Andreis escreveu. E não se enganem. Defendi, com relativo sucesso, nosso Bernardo Carvalho em algumas situações e tenho o sujeito como um baita artesão de letras que, inclusive, me causa inveja. É bom ter por aí alguém que sabe o que está fazendo. Mas falta algo.
Não gosto, contudo, de pensar que a responsabilidade do que falta é do Bernardo Carvalho. Esta é uma perspectiva crítica desmobilizadora, e muito cínica. Falta que os sujeitos que tenha coragem para errar consigam fazer isso com competência, e não com a cara cheia de pó ou coisa parecida. Que BC é um engenheiro, isso é. Que faz transplantes narrativos (coisa que o Andrei não fala, mas me salta aos olhos; é fácil encontrar Perec em “Teatro”; Bernhard em “As iniciais”; Chatwin em “Nove noites” – e encontrar eu digo encontrar, mesmo, como se fosse para tomar um chazinho ou encher a cara), também está lá. E faz bem, com maestria. O que está faltando é o resto que Bernardo Carvalho não é. Inclusive, ele não é outras pessoas. E isso, hoje, não temos. Outras pessoas.
C´est ça.
E já o Leandro disse
Eu também concordo e discordo ao mesmo tempo com quase tudo. Nove Noites e O Filho da Mãe são dois grandes livros. AM, acho que o O Sol se põe… tem um grande defeito, de inserir uma personagem que não tem nenhuma utilidade (a irmã do protagonista no Japão). O defeito que ele vê, de alguém que trabalha sempre com as mesmas peças, pra mim é uma grande qualidade. Algo failbettter.
Há outras contribuições, mas vou abdicar de arrolar todas aqui. Agora me diga você a que vem interditar essa conversa do status de crítica. Vá lá que não é Teoria, não se trata disso – mas há, aqui, especulação e empenho da atenção no tratamento da “matéria literária”. Claro: o estado é de embrião, e precisa de mais tempo e condições para acontecer, e só eventualmente se transforma, e sai dessa coisa mais dispersa e ligeira para virar outra coisa, coagulada em um comentário mais recheado de argumentos e com a devida arrecadação de evidências e desfile de justificativas. Observe que nesses comentarinhos, que seus autores escreveram provavelmente entre uma obrigação e outra, no meio de um dia ordinário, ou se refastelando numa procastinação comezinha e culpadinha, como é por exemplo do meu feitio, há, principalmente, leitura, e conversação sobre a leitura – e sem esses dois ingredientes, nosso ganha-pão cai por terra fácil.
Esse ganha-pão é difícil, mas também bom. Pode ser executado com retidão, e pode ser feito de maneira escrotinha. Pode se beneficiar muito de uma certa obnubilação – que, se vampirizada com destreza, garantirá ao picareta um modus vivendi relativamente folgado e privilegiado, com pouca chance de desmascaramento público – e é sempre bom lembrar que a casa também faz às vezes de asilo de dementes, de inviáveis alhures que aqui encontram abrigo. Esse ganha-pão pode, enfim, trazer uma alegria no processo, um esquecimento eventual do produto que se liga a recuperações infantis, a curiosidades atiçadas ad eternum, e distribui epifanias no ordinário; mas pode ser uma faina frustrante e amarga também, uma litania do ganho pouco, do me falta, etc. É ainda possível que, como diz Bloom, esse negócio esteja agora em sua condição crepuscular. Mas, claro, ainda não: não viveremos pra ver isso.
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