ensaio

Don Draper, John Cheever

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on outubro 29, 2010

A extensão em que se pode ter empatia com Don Draper é enorme: o homem é uma fantasia de sucesso completa, habita um momento histórico e um lugar invejáveis, e celebra um exercício radical do projeto do self-made man: é carismático, astuto e tranquilo, uma fortaleza que se fez com nada exceto habilidade, engenho e arte. Mas, à medida que a narrativa avança, uma tintura começa a aparecer e se espalhar – e você não se surpreende, mas o fato é que é uma tragédia. Há momentos de leveza, mas são eventuais, parênteses. O destino do herói, uma vez que é destino, não admite redescrição, e a contingência não é capaz de nada a não ser de uma folga cômica, um alívio que permite a projeção, em uma outra volta do parafuso, da narrativa para seu final.

Ou não? Observe, por exemplo, o momento em que Draper, na Califórnia, pode se redescrever mais uma vez, sumir, desaparecer: toma um banho de mar, sem camisa, com uma calça cáqui arregaçada, um quarentão em uma praia solitária na costa oeste nos anos sessenta. O que se pensa em um momento assim? O que se deseja? Ou, ainda, no episódio em que ele aparece nadando na piscina, ruas de Manhattan fervilhando no início do verão, e ele escrevendo em seu diário, de novo com uma calça cáqui, os pés descalços: o que é isso? Reforma moral, incipit vita nova?

Você lê os diários de Cheever, mais ou menos dessa época, início dos anos sessenta, ele já com quase cinquenta anos dizendo coisas como A estranheza do tempo, a estranheza da personalidade. Às voltas consigo mesmo, perplexo com seu próprio espectro de ambiguidades e envolvido em um trabalho que, em certa medida, depende do auto-exame para ter sucesso, Cheever parece o tempo todo buscar para si o estado em que, sem nome e nu mais uma vez, ninguém sabe quem ou o que ele é, e ele pode ser qualquer coisa, e acreditar por um momento que a satisfação desse novo desejo de ser será, dessa vez, enfim, algo sem custo, sem dor, sem falência. Você escreve em seu diário sobre isso, acorda cedo para nadar, e se esgota pensando em coisas dessa família: razões, projetos, impotências, importâncias. E isso, embora pareça a posteriori apenas mais uma encarnação da ingenuidade, ou um exercício peculiar de ócio e lassidão, é também a manifestação de uma urgência que talvez seja inevitável, uma consciência da falência final que não se deixa asfixiar pelas mil e umas forças do Não, do Você não é isso, do Você sempre vai ser assim. E então você nada um pouco mais e lembra de Cheever se perguntando, em uma página de 1962,

O que é afinal que eu quero: um quarto mobiliado, um umbral de porta, ou uma rua, o vento soprando?  Depender de coisas e pessoas, estar sujeito às circunstâncias, desejar avidamente evitar a miséria particular da independência. Conhecer as diferenças do que se sente nesse momento da vida, nadar na praia e subitamente perceber que tudo passou de dor para prazer, acreditar que ainda há trabalho a fazer, algo a fazer.

Amigos, Literatura

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 14, 2010

1. Uma amiga – pessoa criteriosa, boa leitora, em cuja opinião sempre confio – me diz Antonio, o livro novo do Roth é pavoroso. Que coisa horrível. É triste ver a decadência de um autor tão bom. Ladeira abaixo total. Ouço constrangimento: é como se ela tivesse vergonha da performance manca do autor que, com razão, admira. Eu, que admiro Roth, embora o admire menos que ela, sinto empatia, me sinto próximo do sofrimento dela. Enigma indecifrável, enigma perene: como o Grande Autor faz merda? Como, no Grande Autor, a performance do amador? Onde está o circuito de comentaristas imediatos do Grande Autor para dizer que ele está fazendo merda? Sabemos que as coisas são mais complicadas, me sinto um pouco melancólico com a frustração da minha amiga, assim é a vida literária: nos esforçamos, aqui está nosso tempo e dinheiro, ambos em geral escassos, lemos, e eis que nos fudemos – mesmo com o Grande Autor.

Depois, comentando sobre esse assunto com o Kelvin no gtalk, ele me disse Isso dá um bom título para um livro de um, digamos, filho espiritual de Garcia Marquez: História da Queda de meus Autores Queridos. Muita maiúscula, capa em tons pastéis, talvez um Iberê na capa. Que tal?

2.Leandro, que também é criterioso, um bom leitor, em cuja opinião sempre confio, tem razão: o Voo da Madrugada, do formidável Sérgio Sant’Anna, é irregular. Ele me disse Olha, Antonio, todo mundo elogia o Serjão, você vive evangelizando, falando pra ler o Voo e tal. Mas é o seguinte: aquilo ali parece um livro em que ele passou a mão na gaveta, reuniu uns trocados e mandou publicar. Tem ótimos contos, o do título é um deles, mas tem uma novela meio remendada – O Gorila, que é engraçadinha, mas parece que chegou uma hora que ele deu uma esticadinha e faltou cortar, e ainda tem um ensaio publicado na Bravo!, que li de novo agora dentro do livro e que me pareceu deslocado no volume. E que é bom, é bom – mas fiquei pensando O que é que isso tá fazendo aqui? Olhando as partes, parece bom, mas a soma, pra mim, resultou num livro ruim.

Ouvi isso e pensei, claro, o que qualquer pessoa em minha situação pensaria: Porra, Leandro. Não tenho argumentos – acho o livro excelente, e talvez varra pra debaixo do tapete o que ele salienta porque, vai saber – porque amor é isso, porque leio Sérgio Sant’Anna desde a época em que ele publicava na Status, vai saber. Quando fui lidando de maneira mais exploratória e sistemática com as possibilidades da narrativa curta contemporânea, muitas vezes tinha a impressão de já ter visto aquilo antes – em contos do Sérgio Sant’Anna. Coover? Barthelme? Carver? Parece que, à sua maneira, Serjão já estava lá quando encontrei todos esses autores – e talvez fosse o caso mesmo de avaliar a exposição a certos autores, tradições e possibilidades quando de sua estadia lá na Iowa Workshop: já vejo o título da dissertação: Inflexões, Influências, Procedimentos: Sérgio Sant’Anna na Iowa writers’ workshop, 1969-1970. Mas, só pra gente retornar aqui ao assunto à mão, disse, claro, como dizia antes, Porra, Leandro e disse também, Tá, você tem razão, mas você também tá pedindo demais, demais mesmo. Olha, pensa aí: troco o Conto Obscuro pelas Obras Completas do Paulo Scott, que tal? Tá vendo como eu tô caridoso? Tô saindo perdendo nessa barganha, broder! E ele, claro, riu.

3. O Diego me escreveu um email dizendo, entre outras coisas, que está lendo o Submundo, de Sua Santidade Don DeLillo – eu nem respondi, estou respondendo agora. Não consigo compreender porque meus alunos não aparecem na aula portanto volumes de Don DeLillo – porque dentre tantos alunos que tenho que são obviamente alunos de Letras frustrados e miserabilizados com sua própria incompetência para passar no vestibular para Comunicação, nenhum se dá conta de que há tesouros à sua disposição entre as páginas de um livro de DeLillo, e talvez uma vida menos amarga e menos desencantada adiante. Não vejo a hora de ocupar o púlpito de uma sala de aula ou de um salão de conferência para fazer uma homilia daquele momento em que um personagem em Os Nomes diz “Se eu fosse um escritor, que maravilha seria se me dissessem que o romance está morto. Imaginem que alegria, quanta liberdade, poder trabalhar nas margens, sem a opressão de uma presença central: eu ia ser uma assombração da literatura, que bom”.

Meu volume de Submundo é essa tradução brasileira, do PHB – eu já estava com o livro na mão há um tempão e um dia, em outro lugar (mas onde? não faço a menor idéia) li “Pafko at the Wall” e pensei Porra. Outro dia mesmo comentei aqui, aludindo ao filme da Martel, os diálogos a la DeLillo. Isso deve ser lido assim: “diálogos do caralho”, diálogos que são o bicho”, “diálogos fenomenais”, “diálogos que redescrevem a concepção de diálogo”, “diálogos que são o diabo para quem quer escrever e os lê”. Não sei mais se foi o Rúpia que me deu o livro de presente, ou se simplesmente pedi o livro emprestado e me apossei (de qualquer sorte, obrigado, amigo). Sei que passei uns quinze dias com ele na mão, era na época em que a Lu morava longe e eu andava pra lá e pra cá como um caixeiro-viajante; o livro é um tijolo, é ofensivo um livro daquele tamanho pra quem viaja. Mas isso dá ainda mais razão para meu orgulho ao ver a lombada torta na estante, o livro virado do avesso na leitura, as páginas cheias de sublinhados e grifos e anotações: eu achava que ia escrever algo sobre o livro mas, ao invés, e talvez com mais proveito para todos os envolvidos, só usei o livro para aprender a ler.