ensaio

Um poema

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on novembro 4, 2015

Gente na ponte

Wislawa Szymborska

Estranho planeta e nele essa gente estranha.
Sujeita ao tempo, não o reconhece.
Tem seu jeito de expressar seu desagrado.
Faz pequenas pinturas assim como esta:

hiroshige
Nada especial à primeira vista.
Vê-se a água.
Vê-se uma das suas margens.
Vê-se uma canoa forçando seu curso contra a corrente.
Vê-se uma ponte sobre a água e vê-se gente na ponte.
Essa gente claramente apressa o passo,
porque de uma nuvem escura
começou a cair uma bruta chuva.

A questão é que ali nada mais acontece.
A nuvem não muda a cor nem a forma.
A chuva nem aumenta nem cessa.
A canoa navega sem se mover.
A gente na ponte corre
no mesmo lugar de ainda há pouco.

É difícil passar sem um comentário:
Esse não é de modo algum um quadro inocente.
Aqui o tempo foi suspenso.
Deixou-se de levar em conta suas leis.

Foi privado da influência no curso dos eventos.
Foi desrespeitado e insultado.

Por causa de um rebelde
um tal Hiroshige Utagawa
(um ser que por sinal,
como sói acontecer, faz muito que se foi),
o tempo tropeçou e caiu.

Talvez seja só uma simples brincadeira,
uma travessura na escala de um par de galáxias,
em todo caso porém
acrescentemos o seguinte:

Tem sido de bom-tom há gerações
ter a obra em alta conta,
deslumbrar-se e comover-se com ela.

Tem aqueles para quem nem isso basta.
Ouvem até o barulho da chuva,
sentem as gotas frias no pescoço e nas costas,
olham a ponte e as pessoas,
como se lá também se vissem,
na mesma corrida que nunca termina
na estrada sem fim, eternamente à frente
e acreditam, na sua desfaçatez,
que de fato é assim.

Tradução de Regina Przybycien 

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Elementos de Crítica Patética – I

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on maio 23, 2015

O melancólico palimpsesto de todos os textos alheios nos quais você já meteu a mão: os infindos trabalhos escolares revisados, os pareceres inumeráveis, os emails, as manifestações, os ofícios.

A agoniada rede semântica na qual você se embaraçou: fiada por você, ano após ano, suas monotonias, sua incomensurável chatura enquanto ânsia de relevância.

Ó, tédio filhodaputa do eterno retorno do turno de fala. Da importância da literatura na formação do homem. Da memória cultural. Do hiato entre a experiência e o texto.

O que é a influência? O sujeito da escritura evolui. Programa de uma vanguarda.

Um instrumento sutil (ele não sabe aprofundar direito).

Uma banalidade corrigida.

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A mãe de Coetzee

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on outubro 18, 2014

Vi que saiu nos anais de um evento um ensaio que escrevi faz um tempo. O ensaio persegue coisas que escrevi há mais tempo ainda, numa resenha sobre Verão, de Coetzee.

Sei que o ensaio é ruim, falha: trata de um feijao com arroz que ja reiterei muito, e não tem a combinação que eu queria que tivesse de pressão hermenêutica e mão tranquila, que é o que vejo em ensaios de Alberto Giordano e, por trás dele, de Barthes, críticos que tieto e tento emular. A resenha acho boa: acho que consegui fazer funcionar a coisa na exiguidade com integridade, me reconheço na forma de ler; passaram-se anos e, embora torça o nariz pra certa grandiloquência que, hoje, leio ali, ainda a subscrevo.

Como acho que o livro tem valor, como se conecta de maneira muito frutífera com o que pesquiso, e como em pesquisa só deveria haver vergonha na má fé, mas nunca no erro, devo persistir escrevendo ensaios sobre esse livro e os outros manejos do biográfico na obra de Coetzee. O declínio evidente de sua produção, patente no último livro, me diz que seu fim de vida como autor será um de miséria da arte, arremedo de si mesmo e balbucios moles dirigidos à galera de fanáticos. Paciência: os Autores também tem o direito de declinar e morrer, inclusive em vida.

Quando apresentei esse ensaio no congresso, um comentário que um cara da audiência fez, um especialista em Proust que foi meu contemporâneo na UFMG, foi que eu devia ler o Clark sobre David. Eu nunca nem tinha ouvido falar desse ensaio, e imagino que só tinha ouvido falar (no sentido de “sei quem é”) do T. J. Clark por ter sido casado com uma artista plástica e professora de arte. Tipo, tinha texto desse cara pela casa.

Fui ler, e tem a ver mesmo: foi uma observação oportuna e enriquecedora, o tipo de coisa que ocorre às vezes nos congressos e que lhe lembra de uma das razões, talvez a fundamental, para sua existência: são espaços muito particulares de interlocução. O texto de Clark vai na chave De Man, explora o regime do biográfico via Rousseau e a prosopopeia: é, assim, também dieta comum pra quem trabalha com esse temário. Mas há algo no ensaio de Clark, um investimento em estratégias de deformação, que vale muito como paralelo para a leitura desses textos (auto)biográficos do Coetzee: uma exploração da maneira como David representa a si, como se autorretrata, sua bochecha inchada evidente e relativizada, subalternizada pelo olhar que tanto solicita de quem vê.

Uma coisa que me atraiu muito foi como Clark circunda o que parece ser o centro do problema: como ele evita a peremptoriedade analítica da declaração e opta por lhe reconduzir, de novo e de novo, ao problema da descrição do quadro, tornando com isso a conclusão uma espécie de suor do trajeto de abordagem. Achei magnífico. Clark, depois, escreveu um livro no qual descreve o que vê ao longo de um ano em que passou visitando um mesmo quadro de Poussin todos os dias, uma espécie de diário da visão. Crítica é isso, pensei, e agora penso, achando que penso melhor, Crítica pode ser isso, também.  No documentário de Dick e Kofman sobre Derridahá um momento em que o entrevistador pergunta a ele Em filosofia, quem é sua mãe?  Derrida, que não parece hesitar nunca, que parece sempre estar acessando um arquivo pronto, de pura disponibilidade, fica claramente perplexo: está diante de uma pergunta inédita, nova não apenas no sentido de “nova nessas situações de entrevista, em que o clichê predomina e sempre se pergunta variantes do mesmo, o mesmo sempre sendo uma forma do óbvio”, mas também no sentido de “putaquepariu, nunca pensei isso”. Já assisti esse documentário três vezes, e é um momento sempre maravilhoso pra mim, e agora mesmo constato que não tenho a menor lembrança de qual a resposta.

 

coetzeevintage
 

Tenho quatro amigos

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on setembro 20, 2014

O primeiro é bonito, vaidoso, encantador: é um mitômano, uma espécie de perene ficcionista da oralidade, vive tecendo suas histórias enquanto ajeita a roupa e o topete, e ergue as sobrancelhas, como se passasse marca-texto no que diz, e confirmasse com seu interlocutor alguma coisa que é da ordem do pacto de bastidores que travaram antes da conversa, no qual tudo foi acertado. Nos conhecemos assim, nos arredores de nossas mentiras, e de lá nunca saímos, o amor pela ficção um elixir que tudo cura, e um certo comunismo de minha parte que garante um atrito útil com um certo fascismo da parte dele. Ficamos embevecidos quando, depois da décima cerveja, ele se dedica a erguer alguma revelação, esboçar alguma narrativa que, sendo sempre mentira, nos dará algum encontro com o novo, o inusitado, o insólito, o belo. É muito generoso, e todas as vezes causa problemas nas contas de bar por querer pagar demais; sua motivação nunca é a culpa, sempre é a alegria. Costuma dizer que é invejoso, e que deseja ser autor, ostentador, magnata cultural. Mas essa é outra de suas ficções: o que deseja é estar ali, centro magnético da mesa de bar, ou caminhando pela Rua da Glória, marionetando suas histórias, sua audiência, confiante no abraço de despedida feliz no fim da noite. Uma vez, estando com ele em um bar repleto, chorei; no bar cheio, era notável que as outras mesas se interessavam pela anomalia de um adulto se emocionando em lugar impróprio: ele se manteve impassível e solidário, silencioso, ouvinte, amigo.

O segundo é quieto e reservado; sei que é meu amigo, e na medida em que nossa vida errática permite sempre atesto com felicidade os esforços que ele faz para me encontrar, muitas vezes para que a gente converse bem pouco, como se não precisasse mais disso. Uma versão das amizades inglesas preconizadas por Borges, excluindo de saída a vulgaridade da confidência e prescindindo do diálogo sempre que possível. Dizem que era tímido na adolescência e, embora hoje esteja longe dessa coisa própria da timidez que é o impedimento à vontade, ainda parece se comunicar com essa área da experiência de uma maneira que me é alheia; me atribulo no trabalho (carreira, projetos) e na vida (dinheiro, brigas) de um jeito que parece nunca ter sido problema pra ele, senhor tranquilo de um saber que não possuo aí. Nosso horizonte de conversas se concentra em nossa experiência com nossos pais; nossos problemas com a literatura; nossas perturbações com as mulheres. Há coisa de um ano ele estava morando em X, cidade onde morei há muito tempo e que virou uma espécie de explicação e signo místico para mim, lugar em que me reconheci como pertinente e pertencente ao mesmo tempo em que me sabia excluído e menor, em um processo tão ambivalente que até hoje imagino ser essa uma de minhas características mais fáceis de detectar. Nos falamos no skype, ele muito triste e com frio, e fiquei numas de animar ele recuperando momentos de minha vida lá, perguntando “Ainda tem isso em tal rua?”, “Ali na esquina de A com B tem tal coisa”, “Você já foi em Z?”. Recuperava aqueles lances de memória já muito manipulados e gastos pelo uso, mas dessa vez com ele como protagonista, ele nas ruas em que andei, ele com minha calça jeans e camiseta branca, ele admirando coisas, experiências, mulheres inatingíveis, inesquecíveis.

O terceiro mora em um quarteirão solitário, perto da praia, numa casa repleta de livros. Seus irmãos, muitos, foram se mudando e ele foi ficando: vive com os móveis e objetos dos anos oitenta de uma casa que precisa de pintura, a casa onde ele nasceu e cresceu e onde continua até hoje. Minha admiração por ele é quase infinita: sua delicadeza tranquila, um homem corpulento, de quarenta anos, que nunca parece ter se desgastado tentando provar nada para ninguém e que portanto é desprovido da carapaça na qual eu, por exemplo, investi tanto tempo e dinheiro. É muito erudito (lê em russo) e rodado (passou dois anos vivendo no leste europeu; antes, morou num kibbutz) e é um dos melhores autores de sua geração, maior ainda por parecer não se importar com fato de ser quase desconhecido e seriamente desprestigiado para quem tem tanta imaginação e força, abundante a ponto de permitir que ele publique naquela lata de lixo da história que é o facebook posts como esse

Quando meu pais eram vivos sempre esperávamos uma visita que nunca chegava. Tínhamos que estar de banho tomado, com roupas sempre limpas, cabelo penteado. Alguém, nunca soubemos quem, podia chegar a qualquer momento na nossa casa. Os móveis tinham que estar impecáveis. Os brinquedos trancados em um quartinho. Minha mãe forrava a cama enquanto eu ainda estava dormindo sobre ela. Naquela época eu ainda não sabia, mas no meu caso a visita eram os livros. Essa é a minha love story, como diria Haňt’a. Escrevo isso enquanto indico um livro para uma amiga. Escrevo enquanto lembro da minha leitura de Jardim, cinzas, de Danilo Kiš. Escrevo enquanto, sem pensar muito, defino assim o livro para uma amiga: É como se o Tio Pepin de Hrabal irrompesse nos salões do Palácio dos Sonhos de Sandman e lá encontrasse as crianças da Rua Paulo e todos dançassem o Čoček.

Ou esse:

Devo a César Aira a ideia que os acidentes de memória criam todo tipo de monstros. Às vezes lembramos algo que já não sabemos se aconteceu daquela maneira ou foi nossa imaginação que criou e preencheu as partes que estavam faltando com simulacros dos acontecimentos, como os dinossauros do Jurassic Park criados a partir de rãs. Assim também são com os livros que nos surpreendem quando procuramos um trecho que imaginávamos de outra forma. Assim é com os livros que li, assim é com Moby Dick, assim é com Extinção. Ambos são relatos obsessivos sobre a extinção. E provavelmente não foi assim que aconteceu, mas foi assim que lembrei: Queequeg é Gambetti. Bernhard e Melville escrevem antibiografias. A grande baleia branca é a Áustria nazista. O redemoinho no mar e na linguagem. O apagamento da origem, da nação, dos pais, do poder. O curto-circuito entre memória e esquecimento. A carta nunca entregue de Kafka ao seu pai.

A menção a Aira não é trivial para mim: conheci Aira por ele, que me enviou um livro, Um acontecimento na vida do pintor viajante, que foi meu primeiro Aira, e que terminou me levando a escrever uma tese sobre Aira. O livro, lamentavelmente, se perdeu em minhas separações e mudanças, mas recordo que a dedicatória dizia, aludindo a minha pobreza e quase impossibilidade de comprar livros novos Meu amigo, ganhar não é comprar.  É o único de meus amigos que tem a barba cheia, o mundo não sabe apreciá-lo, não conhece a alegria de sua proximidade em uma mesa de café, ao redor de uma pizza, a seu lado, caminhando, na calçada, na parte velha da cidade. 

Esses são os quatro amigos.

Prague, Hrabal

Um problema

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on setembro 17, 2014

Andei pensando no seguinte problema:

Quando estou considerando narrativas habituais, tenho um pacote de categorias que aplico para sua descrição e análise. Um exemplo, aqui. A narrativa, e as categorias que utilizamos para lidar com elas, são criaturas do hábito, tradicionais, conhecidas.

Quando estou considerando narrativas excepcionais, extraordinárias: o que é que eu faço?

Eu tenho um problema.

Vejam aqui, por exemplo, o que George Saunders faz para comentar Daniil Kharms: vejam o comentarista se atribulando. A certa altura, ele diz: No processo de martelar um prego, Kharms faz evaporar seu próprio martelo.

Isso, aqui, está como crítica, e é certo que esteja: é comentário de literatura, e além do mais feito num jornal, para informar mas também para vender livro que acabou de ser lançado.

Mas o negócio também tem uma outra vida, que não é a vida vicária que via de regra atribuímos à crítica. A doideira de Kharms provoca um negócio na doideira de Saunders: rua de mão única, um vem ao encontro do outro, rola um aperto de mãos aí.

kharms

 

Ratos diversos

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 26, 2014

Emputecido com aquele sacana, pensei Porra, que rato filadaputa!

Momento menor, ato reflexo do pensamento e, portanto, irrefletido: faux pas semântico, pois assim insultava o rato, toda a espécie, e nada mais.

Me ocorreu que há um momento no Diário de Manhattan, de Néstor Sanchez, em que ele menciona um rato do Harlem. O diário, sabemos, consome pouco tempo na vida de Sanchez, no início do inverno de 1975, e consiste em anotações muito breves devotadas principalmente ao sucesso de seus exercícios físico-espirituais, aprendidos com Gurdjieff (sendo destro, só escrever com a mão esquerda; em hipótese alguma cruzar as pernas; carregar os pertences em uma sacola, mantendo sempre as mãos livres; nos sonhos, tentar ver a própria mão, etc). Me afeiçoei muito a esse texto, nem sei a razão, o que talvez fale de uma verdade do afeto que justifica meu retorno ao texto, minha certeza de que o texto me diz algo, e continua dizendo a cada leitura. Há um diálogo platônico no qual se diz, como um elogio à fala, que um texto escrito, ao ser interpelado, sempre lhe responde o mesmo: vê-se que Platão era um asno ou, no mínimo, péssimo leitor.

Aqui está Sanchez, em Manhattan, com muito frio, e se propõe, como um exercício, a passar uma noite no Harlem, na rua, dormindo na rua – ou, pelo menos, sobrevivendo à noite na rua. Não é sua Nova Iorque hipster e asséptica: é 1975, uma cidade suja e putona, o cenário de Taxi Driver, a Times Square comentada por Delany em Times Square Red, Times Square Blue. Então tem esse sudaca doidão: é um homem que ignorou seu único filho por mais de vinte anos; é um autor que tinha sucesso, foi resenhado positivamente por Cortázar, imaginem o que era isso em 1971? Mas Sanchez caga pra tudo e, cheio de lances espirituais levados muitíssimo a sério, vai passar a noite no Harlem:

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O vandalismo, sobretudo em crianças e jovens, é comentado com frequência como um grave problema nacional. Não há dúvida: visitando ontem a universidade, impressionou o espétaculo da esficácia destruidora em tudo, de novo o alarde da feiúra, somado à grosseria e ao grito de tudo. Vida neurótica do homem americano, que se proibiu o sussurro. Inconstância neurótica, ninfomaníaca, da mulher americana, que se proibiu o desejo futuro.

Tentando dormir no Harlem; primeiro, me aproximei de um latão de lixo em que improvisaram uma fogueira, fisionomias hostis, não fui bem-vindo. Impossibilidade do gesto solidário, subhumanidade. Em um beco, me encosto em uma porta que parece não ter sido aberta há muito tempo, e a temperatura, aqui, está melhor. Quando me aquieto e começo a me aquecer sinto algo e, levando a mão às costas, toco um rato, querendo também se aquecer. Nenhum temor de parte a parte.

“Nenhum temor de parte a parte”: esse trecho poderia ter sido o alvo de um comentário de Levrero em seu “momento rato”, no Diario de un canalla — ao falar de seu oposto, está falando da mesma coisa. O incidente funciona como uma espécie de parêntese à inauguração do leitmotif das pombas, que vai percorrer quase tudo que Levrero escreve desse texto até o fim, e que vai protagonizar a deriva de La novela luminosa. É também um dos raros momentos em que se tematiza, de maneira algo positiva, a condição filial: em Levrero o filho é estorvo (Juan Ignacio, em El discurso vacío), ou invisível, está à margem, não faz tema (sua filha, anônima, que recebe parte da bolsa Guggenheim, que tem um filho, em La novela luminosa).

Ora, se as pombas são anúncios do Espírito, o que são os ratos? Diante da resposta fácil (seu anátema), Levrero faz o que sabe fazer: presta atenção, descreve o que vê, e é melhor nem dizer mais: vejam aqui o que aparece quando, depois de passar um tempo brincando com a ratazana que apareceu em seu quintalzinho no prédio da Rua Rodríguez Peña, percebe que a cada movimento de aproximação que faz, o animal se esconde, mas sempre deixa a cauda fora do esconderijo:

Esse detalhe de sua ingenuidade despertou, mais que qualquer outro, uma ternura infinita em mim, uma ternura quase insuportável. Vi naquela ratinho um menino, com toda sua inteligencia, mas também com toda sua falta de experiência de vida. Quase diria que vi ali um filho. E isso que escrevo agora me umedece os olhos, me faz arder os olhos.

Por fim, há meu rato favorito na História da Literatura – uma descrição magnífica da amizade, do afeto, da gentileza gratuita e recíproca – que aparece num dos trechos do diário de Jules Renard que foi depois recolhido no Histoires naturelles. Renard está só em La Gloriette, é noite, e ele escreve: escreve precisamente a página que estamos lendo. A cada momento em que começa a escrever, percebe que um som parece fazer eco ao rangido da pena na página. Para de escrever, o outro som para; volta a escrever, o sonzinho volta. É só um murmúrio de um eco, mas há intenção, supõe Renard. Imagine o lampião, imagine o silêncio, o gradual teste empírico de hipóteses, até que Renard se dá conta: é um ratinho, roendo o pé da mesa. No silêncio total, o rato, ressabiado, espera. Mas quando há o som da escrita, o rato rói, tranquilo, a mesa, e se conforta, e Renard continua escrevendo, e nos descrevendo isso, e comenta que o rato, mais confiante, se aproxima, e começa a roer o seu tamanco.

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Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 15, 2014

Sei que pouco antes de morrer Sebald andava interessado em Clarence Schmidt, e é curioso ver como o verbete pra Schmidt na wikipedia diz que ele construiu sua grande obra, a casa que denominou de “Milagre da Montanha”, usando “objetos encontrados e materiais reciclados” – o que me parece descrição bem razoável para o que o próprio Sebald fez. Seja como for, eu ia gostar de ler esse ensaio, pensei enquanto lia hoje mais uma vez aquela coisa linda que Sebald escreveu sobre Walser, e imagino se nada sobrou, se não há notas, uma coisinha.

Sei que não, pois D, que trabalhou nos arquivos Sebald em Marbach, me disse Não tem nada, Antonio. O cara preparou o túmulo mesmo. Estava já tudo organizado: os postais, as notas, as fotos, as referências a documentos e originais em uma caixa por cada livro. Consciente como ninguém do monstro do fundo do mar que pode ser um arquivo literário, Sebald parecia estar dizendo para a posteridade Pessoal, por favor, procurem em outro lugar. Mas onde? Il n’y a pas de hors-archive.

 

Não é curioso? O sujeito faz uma obra cuja grandeza se deve em boa medida ao jeito como resiste a um modelo de ordenação de uma barafunda arquivística, que explora e retorce para inventar histórias de paralelismo errático, cujo desenrolar parece fumaça de cigarro subindo: você se habitua ao comportamento da fumaça e, especialmente se for fumante, prevê e inventa formas, forjando a variedade e o jogo no interior do hábito, como parte de seu exercício, de seu tédio. O que interessa é que estamos bem longe da linha reta, e qualquer ventinho bagunça seu coreto. Resultado: um conjunto de textos cheios de fotos borradas, documentos rasurados, ilustrações de enciclopédias datadas, alusões  voláteis, falhas; o agregado disso (e não a intenção subjacente à agregação) é sua força. Essa obra é a própria versão literária da casa de Schmidt:

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Quanto mais leio a recepção, e mais me aporrinho com insistências funcionalizadoras, exercendo muita pressão hermenêutica para fazer a obra falar de reparação, trauma, holocausto etc, mais penso que seus melhores momentos são aqueles em que se expõe seu cimento de betume, precário e inflamável, deixando a descoberto que sua grandeza é só outro nome pra sua fragilidade. Se há uma nota de rodapé que me parece ser feita pela obra, não é ao silenciamento do povo alemão com relação à guerra – isso é o que Nabokov chamava de “topical trash”, é o momento didático, me pergunto quem precisa disso, que melancólico o pleito perene de alguns que circundam a literatura por “relevância” e “justificação”. Se a obra é nota de rodapé, provavelmente não é à História, mas talvez ao comentário de Walser a Seelig, Não vim pra cá pra escrever, vim pra cá para ficar louco. 

 

 

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 13, 2014

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Eu, que tantos homens fui, também fui um fumante, como Ramón Ribeyro, mão em concha contra o impedimento do vento no meu isqueiro: fui feliz. E não à toa me lembro dele justo agora: hoje se inaugurou uma prática de boxe em frente à minha casa, e estou em West Baltimore, e de eremita isolado virei apenas mais um pobre-diabo. Odeio os esportistas, em particular os que se celebram contra meu silêncio; preferiria fumar diante deles, ostentando, malditos. 

Lástima, pois se há algo que me enche o saco em tudo que li de Ramón Ribeyro é justamente seu apego a dizer alguma coisa através dos seus pobres-diabos. Foda-se a relevância social, o didatismo, a lição. Se o leio hoje, e se elevo Ramón Ribeyro sempre que posso, é por coisas como Ridder e o pesa-papéis“Época? Lugar?”: perfeito, foda-se a verossimilhança, se vire, leitor: estude, leitor! Aprenda a ler. 

Ou pela história, que pérola, contada na primeira fase do diário, La Tentación del Fracaso (Seix Barral, 2003). Um tal Narvaez aparece em Lima, retornado de um período em Arequipa, muito emagrecido. “Lá a boemia era brutal”, diz Narvaez. “Se continuo naquela vida cã, me matam, ou me suicido”.

Lê, depois, um conto escrito por Narvaez “que me pareceu belíssimo, de uma intensidade que me deixou pasmado”.

Passam-se os dias. Conta que saiu e se embebedou com Narvaez. O álcool fala ao fraterno, revelação: “a impressão que me causaram os antebraços de Narvaez talhados pela navalha suicida”. O cara nunca tinha ido a Arequipa, estava em uma clínica se desintoxicando da morfina, “me contou experiências aterradoras com a droga”, “em consequência, agora fuma setenta cigarros por dia”.

Organiza-se, semanas depois, um sarau. Vários leem suas coisas, Narvaez está lá. Por alguma razão, ele não lê, e se emputece, e se vai. Ramón Ribeyro, contrito, lamenta: “seu conto era melhor que tudo que foi lido”. O ano é 1950, nas quase setecentas páginas do diário não se ouvirá mais falar de Narvaez: seu conto se chamava Crisálida.  

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 10, 2014

A Amazon me diz “You purchased this item on September 16, 2002″. E, de fato, lembro: tive esse livro, o livro do Donald Richie sobre Ozu, na época em que eu dava aula de Inglês na Rua Fernandes Tourinho: lembro de fumar um cigarro enquanto esperava um espresso no restaurante na esquina com a Rua Sergipe, onde eu costumava almoçar, e cujo dono – cujo nome não me lembro – me ensinou a jogar gamão. Assim é a memória, injusta: ri com esse homem, comentei sobre muitas mulheres e coisas da vida, aprendi a jogar gamão com ele, e no entanto não lembro seu nome, lembro sua fisionomia e lembro desse dia em que, esperando que ele preparasse meu café, enquanto eu fumava e ele mesmo tinha um cigarro aceso na mão, folheava esse livro e descobri que alguém havia arrancado duas paginas do meio do livro. 

Isso me deixou estupefato. Quem arrancou? Era um livro novo, intacto, comprado na Amazon. Fiquei com certeza, imagino, ponderando as razões daquelas paginas, o que havia nelas, ou se só acidente, ou gratuidade perversa. O que aconteceu ali? Lembro também que a chave de abertura do livro é algo como “Ozu tem como tema principal a família japonesa, que ele examinou de todo jeito, usando-a como microcosmo”: é isso, só que dito com a graça habitual de Richie, dito melhor, dito bem. Nunca esqueci.

Nunca avancei na leitura desse livro, e ele terminou se perdendo no fim de algum casamento, na voluntariosa perda de livros que fiz com que me acontecesse aqui e ali. E hoje, depois de muito tempo sem lembrar dele, ou mesmo de Ozu, lembrei dos dois, enquanto assistia Another Year, o filme de Mike Leigh de 2010. Uma vez, conversando com F, ele me perguntou se eu já tinha visto o último filme de Leigh – era outro filme, não era esse, essa é uma memória antiga, a alegria do encontro com F diz Isso é remoto, isso aconteceu faz muito tempo. Disse que não e perguntei É como o outro? Inglaterra, gente fudida, agonias da pobreza, etc? e ele riu e disse Sim, isso – só que esses personagens são mais fudidos ainda! E eu ri também, e depois vi o filme, e em momentos assim era muito bom ser amigo de F, como é bom lembrar dele assim, rindo, e de minha graça também, junto com ele, uma graça de velhos amigos e que pena que isso também acabou. Então esse é mais um filme de Mike Leigh, e há isso, Inglaterra, gente fudida, etc: uma concentração numa família miúda, em seu modo de vida, em hábitos, alguns matizes próprios. Esse filme é mais próximo de uma classe média bem média, e o protagonista tem um irmão: parecem duas versões de mim, uma que foi pra universidade e outra que ficou no subúrbio. Ou seja: me lembrei de Ozu, das famílias de Ozu, e me lembrei de minha vida também, pois para isso muito me serviu o cinema, a literatura, e arte: me afasta de minha vida com uma mão e me devolve com a outra. Enlevado pela passagem do ano que o filme inventa e oferece, imaginei um cotidiano presente e futuro, o envelhecimento que bate à porta, meu testemunho do sucesso relativo dos próximos e minha próprias réguas e cálculos de ascensão ou declínio E, sendo hoje dia dos pais, lembrei de uma das últimas vezes que almocei com meu pai: não numa mesa doméstica mas, como era nosso encontro nos últimos anos, em um restaurante perto do trabalho dele onde sequer éramos habituais, só clientes casuais e ordinários num dia de semana. Numa dessas vezes, não a última, mas uma das últimas, contei pra ele que tinha feito algo importante pra mim, queria dizer pra ele que tinha tido algum sucesso, alguma forma de sucesso – e o que lembro é que ele ouviu, e que ele pareceu estar feliz por mim, comigo, ali.

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Cecil Taylor

Posted in Ensaio by antoniomarcospereira on agosto 10, 2014

Venho lendo e pensando sobre Cecil Taylor ultimamente. Venho nos ultimos anos, na verdade – mas, nos ultimos dois, tres meses, por conta de um ensaio que planejo escrever sobre César Aira, Cecil Taylor tem aparecido mais.

Um domingo, fim de tarde, eu estava vendo o programa do Arthur da Távola, Arte de ver, arte de ouvir.  Eu devia ter onze, doze anos, então isso é uma lembrança de 84, 85, e esse programa é tão remoto que não achei nada no youtube, nenhum vestígio. Imagino que foi algo que peguei com meu pai: que meu pai estava assistindo isso algum dia, algum fim de domingo, e fiquei ali, junto, e assim fiquei com a lembrança de ver o programa. A ideia de se tratar de um hábito pode muito bem ser fictícia, pois há impressão de regularidade, mas de lembrança do programa tenho apenas uma vaga recuperação geral: exposições do Arthur da Távola, comentando alguma obra, algum autor, seguida de um momento em que o título se justificava. Lembro, assim, de incidentes, de lances do programa, e de alguma maneira da proximidade de meu pai – mas mais adiante comentarei mais sobre certa improbabilidade aqui.

Um dos incidentes passa por uma exposição longa a respeito de Itzhak Perlman, e o Arthur da Távola falava algo sobre os dedos gordinhos do Perlman, do cenho, das expressões no rosto – e a isso se segue, acho, a execução de algum movimento de um concerto de Beethoven. E em outro incidente ele fala de Cecil Taylor e – disso lembro vivamente – diz como Taylor encarna o artista, e é como se ele estivesse falando em maiúsculas, e ele diz “as mãos, a postura, o cabelo, tudo”. E então vejo Cecil Taylor, numa televisão Telefunken, num apartamento de um conjunto habitacional do BNH em Salvador. E, como talvez dissesse Barthes a respeito de algo semelhante, “Isso pega”.

Mas o que mesmo? É, como disse outro dia aos alunos, o estranhamento. É ostranenie, é isso: a ruptura fica, marca, e perdura. Da música, não faço ideia e, mesmo hoje, 25 anos depois, tendo já ouvido o diabo, ranjo os dentes ouvindo essa musica: como se para ela não houvesse aprendizado na mesma medida em que não há esquecimento. Começo a ouvir, ranjo os dentes, interrompo a musica e, se for o caso, que venha outra coisa, outro jazz, mas algo que nao faça isso comigo. Gera algo curioso, pois parece que, na mesma medida em que não consigo fazer nada com a musica, ela sempre parece ser capaz de fazer a mesma coisa comigo, e em parte o que ela faz é me retornar àquela condição de contato infantil e atônito.  E há uns dez anos, quando conheci esse texto de Aira, Cecil Taylor – uma espécie de biografia dos primeiros anos de Taylor, ou um breve ensaio sobre a construção de um nome de artista, ou uma narrativa sobre o novo na arte: vai saber, com Aira nunca se sabe -, isso também pegou, e continuou como algo lido, relido, aproveitado em margem de desperdício, quer dizer: não sei bem o que fazer com isso, mas me sinto impelido a fazer algo com isso e, na falta do saber o que fazer, me gasto em torno disso. Com o texto, quero o que sei que a musica me negou. Mas nem assim, por força de desejo, sou menos órfão, menos vão: continuo à toa e, como se vê, derivativo, e não sei o que está acontecendo, nem na música, nem no texto. O fato é que percebo que parece que vou envelhecendo só pra achar cada vez mais frágil saber. Vejo alunos, colegas, amigos, todos cheios de suas peremptoriedades. Mas, na hora de botar o meu saber na mesa, vou ter bem pouco a meu favor a não ser coisas como essa foto, linda, do Cecil Taylor, que imprimi e coloquei diante de mim como um talismã. Para que (a superstição, o pensamento mágico) me desse sorte nesse ensaio, talvez. Me servisse de escudo contra a desonra que seria sacanear uma coisa íntegra – como essa foto, aquele ensaio, ou a lembrança do dia em que vi Cecil Taylor na televisão – com nada mais que minha ansiedade de aparição na cultura, ou com a empáfia tola, impregnada de voz ardida e certeza, dessa urgência por relevância tão própria de nossa época.

CecilTaylor