Tenho quatro amigos
O primeiro é bonito, vaidoso, encantador: é um mitômano, uma espécie de perene ficcionista da oralidade, vive tecendo suas histórias enquanto ajeita a roupa e o topete, e ergue as sobrancelhas, como se passasse marca-texto no que diz, e confirmasse com seu interlocutor alguma coisa que é da ordem do pacto de bastidores que travaram antes da conversa, no qual tudo foi acertado. Nos conhecemos assim, nos arredores de nossas mentiras, e de lá nunca saímos, o amor pela ficção um elixir que tudo cura, e um certo comunismo de minha parte que garante um atrito útil com um certo fascismo da parte dele. Ficamos embevecidos quando, depois da décima cerveja, ele se dedica a erguer alguma revelação, esboçar alguma narrativa que, sendo sempre mentira, nos dará algum encontro com o novo, o inusitado, o insólito, o belo. É muito generoso, e todas as vezes causa problemas nas contas de bar por querer pagar demais; sua motivação nunca é a culpa, sempre é a alegria. Costuma dizer que é invejoso, e que deseja ser autor, ostentador, magnata cultural. Mas essa é outra de suas ficções: o que deseja é estar ali, centro magnético da mesa de bar, ou caminhando pela Rua da Glória, marionetando suas histórias, sua audiência, confiante no abraço de despedida feliz no fim da noite. Uma vez, estando com ele em um bar repleto, chorei; no bar cheio, era notável que as outras mesas se interessavam pela anomalia de um adulto se emocionando em lugar impróprio: ele se manteve impassível e solidário, silencioso, ouvinte, amigo.
O segundo é quieto e reservado; sei que é meu amigo, e na medida em que nossa vida errática permite sempre atesto com felicidade os esforços que ele faz para me encontrar, muitas vezes para que a gente converse bem pouco, como se não precisasse mais disso. Uma versão das amizades inglesas preconizadas por Borges, excluindo de saída a vulgaridade da confidência e prescindindo do diálogo sempre que possível. Dizem que era tímido na adolescência e, embora hoje esteja longe dessa coisa própria da timidez que é o impedimento à vontade, ainda parece se comunicar com essa área da experiência de uma maneira que me é alheia; me atribulo no trabalho (carreira, projetos) e na vida (dinheiro, brigas) de um jeito que parece nunca ter sido problema pra ele, senhor tranquilo de um saber que não possuo aí. Nosso horizonte de conversas se concentra em nossa experiência com nossos pais; nossos problemas com a literatura; nossas perturbações com as mulheres. Há coisa de um ano ele estava morando em X, cidade onde morei há muito tempo e que virou uma espécie de explicação e signo místico para mim, lugar em que me reconheci como pertinente e pertencente ao mesmo tempo em que me sabia excluído e menor, em um processo tão ambivalente que até hoje imagino ser essa uma de minhas características mais fáceis de detectar. Nos falamos no skype, ele muito triste e com frio, e fiquei numas de animar ele recuperando momentos de minha vida lá, perguntando “Ainda tem isso em tal rua?”, “Ali na esquina de A com B tem tal coisa”, “Você já foi em Z?”. Recuperava aqueles lances de memória já muito manipulados e gastos pelo uso, mas dessa vez com ele como protagonista, ele nas ruas em que andei, ele com minha calça jeans e camiseta branca, ele admirando coisas, experiências, mulheres inatingíveis, inesquecíveis.
O terceiro mora em um quarteirão solitário, perto da praia, numa casa repleta de livros. Seus irmãos, muitos, foram se mudando e ele foi ficando: vive com os móveis e objetos dos anos oitenta de uma casa que precisa de pintura, a casa onde ele nasceu e cresceu e onde continua até hoje. Minha admiração por ele é quase infinita: sua delicadeza tranquila, um homem corpulento, de quarenta anos, que nunca parece ter se desgastado tentando provar nada para ninguém e que portanto é desprovido da carapaça na qual eu, por exemplo, investi tanto tempo e dinheiro. É muito erudito (lê em russo) e rodado (passou dois anos vivendo no leste europeu; antes, morou num kibbutz) e é um dos melhores autores de sua geração, maior ainda por parecer não se importar com fato de ser quase desconhecido e seriamente desprestigiado para quem tem tanta imaginação e força, abundante a ponto de permitir que ele publique naquela lata de lixo da história que é o facebook posts como esse
Quando meu pais eram vivos sempre esperávamos uma visita que nunca chegava. Tínhamos que estar de banho tomado, com roupas sempre limpas, cabelo penteado. Alguém, nunca soubemos quem, podia chegar a qualquer momento na nossa casa. Os móveis tinham que estar impecáveis. Os brinquedos trancados em um quartinho. Minha mãe forrava a cama enquanto eu ainda estava dormindo sobre ela. Naquela época eu ainda não sabia, mas no meu caso a visita eram os livros. Essa é a minha love story, como diria Haňt’a. Escrevo isso enquanto indico um livro para uma amiga. Escrevo enquanto lembro da minha leitura de Jardim, cinzas, de Danilo Kiš. Escrevo enquanto, sem pensar muito, defino assim o livro para uma amiga: É como se o Tio Pepin de Hrabal irrompesse nos salões do Palácio dos Sonhos de Sandman e lá encontrasse as crianças da Rua Paulo e todos dançassem o Čoček.
Ou esse:
Devo a César Aira a ideia que os acidentes de memória criam todo tipo de monstros. Às vezes lembramos algo que já não sabemos se aconteceu daquela maneira ou foi nossa imaginação que criou e preencheu as partes que estavam faltando com simulacros dos acontecimentos, como os dinossauros do Jurassic Park criados a partir de rãs. Assim também são com os livros que nos surpreendem quando procuramos um trecho que imaginávamos de outra forma. Assim é com os livros que li, assim é com Moby Dick, assim é com Extinção. Ambos são relatos obsessivos sobre a extinção. E provavelmente não foi assim que aconteceu, mas foi assim que lembrei: Queequeg é Gambetti. Bernhard e Melville escrevem antibiografias. A grande baleia branca é a Áustria nazista. O redemoinho no mar e na linguagem. O apagamento da origem, da nação, dos pais, do poder. O curto-circuito entre memória e esquecimento. A carta nunca entregue de Kafka ao seu pai.
A menção a Aira não é trivial para mim: conheci Aira por ele, que me enviou um livro, Um acontecimento na vida do pintor viajante, que foi meu primeiro Aira, e que terminou me levando a escrever uma tese sobre Aira. O livro, lamentavelmente, se perdeu em minhas separações e mudanças, mas recordo que a dedicatória dizia, aludindo a minha pobreza e quase impossibilidade de comprar livros novos Meu amigo, ganhar não é comprar. É o único de meus amigos que tem a barba cheia, o mundo não sabe apreciá-lo, não conhece a alegria de sua proximidade em uma mesa de café, ao redor de uma pizza, a seu lado, caminhando, na calçada, na parte velha da cidade.
Esses são os quatro amigos.
Eis que se ergue, podemos vê-lo na curva do tronco da árvore: estava a olhar para o outro lado, olhar adiante da costa, altaneiro, o cenho febril e intranquilo dos que contém multidões: é o Xamã-Mor, o Neo-Babalorixá, o Pós-Buda, o nosso, o autóctone e autêntico, a rezar. Urna grega nos trópicos, cercanias da árvore, diante do mar, reverberação dos vais-e-vens todos do universo quântico vibratório da murta.
Eis que o Neófito se aproxima, sem titubeios, pois a vontade é muita e a juventude é forte e rotunda e abrupta: busca a benção, será quiçá merecedor da benesse da benta saliva que é aspergida em fractal paralela à voz do mestre, que canta a voz de um antanho futuro e místico, relativo e absoluto em si mesmo a partir sempre de decreto próprio de si e dos seus.
Ainda que eu ande pelo vale da Sombra da Árvore do Picnic de Paquetá não temerei mal algum, pois sua eufemia e seu cajado verbal estão comigo, Mestre, Xamã maior, Pós-Babalorixá, ânus austral máximo de pura sabedoria incandescente, fonte do grande peido místico celebrado na Quinta da Boa Vista como o Novo Advento, a Última Vinda. Em Paquetá, onde o Claudio Cavalcanti celebrou um alterego que celebrava a curva boa da fértil melancia, onde a semente de melancia foi lançada da barca, e além, em um mesmo plano de consistência, na esquina do desvio, alors! Ou, como já disse um dileto discípulo (há quem o chame O Herdeiro), Na mola mestra das pregas do cu do mestre se oculta O Segredo.
O Neófito se aproxima, o Mestre completa a curvatura do círculo ao redor que circunda a árvore, há um colóquio, Mestre, ao que o Mestre, imediato, retruca Não vai falar com ela? E o Neófito, qua neófito, inquiridor e estupidificado, mas ao mesmo tempo pronto para a prenhe novidade do Outro maior sempre à espreita, nada responde, olha e espera, ao que o Mestre, sabedor de tudo que é dos Novos e da Novidade, suplementa, cândido e manso, Ela, A Árvore. E o Neófito diz Como vai, prazer.
Em Setembro de …
Em Setembro de 2002 eu estava lendo quase que só coisas de e sobre Raymond Carver. Por alguma razão que hoje ignoro entrei numas de Carver naquela época, e lembro de passar um tempão sentado em um pufe que tinha na sala, com o cinzeiro do lado, fumando e lendo até altas horas.
Será que havia alguma espécie de purgação ou catarse nessas leituras? Eu estava bem fodido, mas é dureza você estar mais fodido que um personagem de Carver. Bem podia ser uma pulsão terapêutica, voltada para estabelecer minha boa fortuna relativa por contraste. Vai saber. Lembrei desse período faz uns dois anos quando, na casa de F, vi um exemplar da biografia de Carver. É boa?, perguntei. Não sei, não li ainda, ele respondeu. Mas foi o G que me recomendou, ele gostou.
G nessa época estava prestes a defender a tese dele, que era, mais ou menos, sobre Carver. Botei fé no juízo do especialista e fui ler a biografia. Era boa, mas cheia daquelas interpolações risíveis, e o fato é que depois de vinte, trinta biografias literárias a monotonia do trilho hermenêutico cansa, os perenes licenciamentos dos biógrafos. A meio caminho da coisa a abandonei, cansei de ver Carver se fuder, e já sabia do pano final com aplausos e das baixarias post-mortem entre os herdeiros; larguei o livro à toa, em uma pilha qualquer na casa, me esqueci dele.
Pouco depois minha irmã foi passar férias comigo – era meu último inverno em Belo Horizonte, mas ninguém sabia disso ainda. Ela pegou a biografia um dia, me perguntou se era boa, eu meio que repeti o que o F tinha me dito sobre o G e mais o que acabei de escrever aí em cima; ela ficou uns dias manuseando, levando pra lá e pra cá.
Hoje abri o livro, procurando uma parte que eu tinha sublinhado, e encontrei varias anotações dela. Algumas eram sublinhados a lápis, pedaços de frase como
Sandmeyer was intrigued by an abandoned school, but Ray was restless
praying to Jesus in one breath/ to the snake in the other
He had given up attempts to look cool
Inside was an old iron bed. I found a shoe box under the bed.
He did not know it, but he was already at the midpoint of his life.
Ela também escreveu ao redor de algumas fotos, como se fossem legendas alternativas:
Thunderous sideburns and a jewfro, brother: that’s how you need ‘em!
To find solace in one’s art is beautiful.
There’s something about Ray
Exercícios de Crítica Literária Contemporânea
1.
O comentário biográfico incide reiteradamente sobre dois processos em Henry James.
Um, é seu tartamudear: não é de forma alguma uma gagueira, mas uma enunciação hesitante e tateante que o persegue desde muito cedo. Não há gravações de James, mas podemos imaginar a sequência de Well… Uhm… I mean… So… etc
Outro é o uso que faz de um amanuense: por volta dos 50 anos, James começa a manifestar os sintomas do que hoje é a conhecida Síndrome do Túnel do Carpo e, como uma resolução para seu sofrimento cotidiano, contrata um copista. É possível imaginá-lo, a partir desse momento, alterando sua rotina de trabalho, e incorporando ao seu processo composicional um deambular pela sala, um ir e vir que ocorre em paralelo à enunciação enquanto o copista, silencioso, oculto, atento, copia.
Estabeleça um paralelo entre os incidentes citados e as peculiaridades do discurso indireto livre na obra tardia de James, com particular atenção a The Golden Bowl.
2.
Em 1942, Bowles se mudou para um apartamento na 14th St com a 7th Ave. O ocupante anterior tinha sido Duchamp e, assim, eles se conheceram.
Improvise.
3.
É conhecida a afirmação de Piglia: A critica é uma das formas modernas da autobiografia. Um sujeito escreve sua vida quando crê estar escrevendo suas leituras.
Disserte sobre o tema, considerando as manifestações em A, B, e C.
Joseph Mitchell, Dad, 1992
Lembramos daquele comentário de Piglia: um crítico narra sua vida ao escrever sobre os livros que leu – suas leituras inscrevem um padrão de saliências específico nos textos, uma marca de identidade hermenêutica. Isso faz sentido: basta ler o blog do Zé Castello ou o do Kelvin por um mês pra perceber que há algo dessa ordem em operação – não é apenas estilo, é mais um modo de usar.
A publicação recente de uma tradução de trechos dos Diários de Cheever me fez dar atenção ao canto da estante no qual estão depositados meus livros de Cheever – Cheever estava na berlinda, vários conhecidos comentando, então pensei em Cheever de novo, fui me aproximar dele de novo, e fui pro canto da estante onde estão seus livros:
É só um amontoado de livros – mas a história do seu amontoamento é, certamente, uma biografia: o crítico também escreve sua vida nos livros que acumula, como os acumula, como os separa, organiza e controla, o que mantém, o que dissipa. Ora, tenho trabalhado como um cão ultimamente pra escrever uma biografia de Saer – mais: para dar sentido ao projeto de sentar todo dia para escrever uma biografia de Saer. Se esse arroubo a respeito da vida nos livros que se tem funciona, o que faria eu diante de um trecho de prateleira de livros de Saer? Esses livros seriam indício suficiente de quê? Servem para quê, a não ser para serem manuseados por febris epígonos fanáticos, eventualmente fazerem uma graninha para a família, os Nobres Livros do Autor Morto – servem para quê?
Posso favorecer a hipótese da utilidade tomando minha própria prateleira na foto como exemplo: aí estão minha vida em NY (os balcões mais baratos da Strand), uma ex (duas, melhor dizendo), um amigo perdido, a época em que queria ser tradutor, o momento em que parei de fumar (era 2008, janeiro, e estava lendo os Diários de Cheever), etc. Aí está também aquela história do Kelvin indo no Berinjela vezes sem conta e vendo o volume de cartas do Cheever e paquerando o livro sem comprar até que, anos depois, o Berna o enviaria pra mim – exatamente o mesmo livro, passando por dois amigos meus, e chegando a mim graças ao antigo dono, ignorado, sem nome pra mim, que um dia o depositou lá no Sebo – e como abriu mão das cartas de Cheever, em benefício de quê.
Aí está também, envolvido num papel pardo para proteger um pouquinho a capa, um de meus livros favoritos, o quarto exemplar que tenho do mesmo livro, Up in the Old Hotel, de Joseph Mitchell. Mitchell, que tinha uma paciência de Jó, escreveu esses textos maravilhosos, nos quais não se conta quase nada: são só umas histórias de tipos ordinários, que se fazem envoltos em mistérios vãos acho que mais pela força magnética que a noção de idiossincrasia exerce sobre nossa espécie que por qualquer outra razão. São histórias de quase nada, e todavia. Lembro de uma época em que lia os capítulos, ritualisticamente, toda terça e quinta à noite: eu não trabalhava nesses dias, e ficava grifando trechos e sonhando em escrever bem (eu também fumava, e nem pensava em parar). Lembro de minha melancolia ao ler Joe Gould’s Secret, e como me surpreendeu o fato de estar aparentemente mais tocado ao ler o texto pela segunda vez, tolamente surpreso por estar contrariando uma regra pseudocristã que dá sempre mais valor ao mais virginal (li esse texto em voz alta uma outra vez, lembro). E outro dia – está fresco, foi agorinha mesmo, agora no Natal – cheguei no hotel de uma visita a mil sebos, cheio de livros, feliz, e com mais um volume do mesmo livro de Mitchell. Deitei na cama, abri o livro e vi, então, a dedicatória.
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